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Dominique Wolton: “Temos que reintroduzir a civilidade das relações” 

Um dos maiores pensadores da comunicação no mundo diz que a capacidade de negociação e o respeito ao outro são princípios basilares para o efetivo avanço da sociedade

sexta-feira, 19 de julho | 2024

Um dos maiores pensadores da comunicação no mundo diz que a capacidade de negociação e o respeito ao outro são princípios basilares para o efetivo avanço da sociedade 

Para o sociólogo, a felicidade e o futuro não estão na internet, mas em conseguir que as pessoas se encontrem, se respeitem. / Foto: Giordano Toldo

Ao mesmo tempo em que a chamada “comunicação técnica” acelera o seu avanço, a capacidade humana de estabelecer conexões esbarra no egocentrismo. Quem diz é Dominique Wolton, fundador e diretor do Instituto de Pesquisa em Comunicação e Mídia da Universidade de Lyon III, na França. Autor de mais de 20 livros sobre comunicação no contexto digital, comunicação política, relação entre mídia e poder e interação entre culturas, Wolton mantém há mais de duas décadas uma estreita relação com o Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM), da Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da PUCRS. Na entrevista a seguir, ele reflete sobre estes e outros temas – inclusive com um aparte sobre o Brasil. 

Quais são os maiores desafios de comunicação do século XXI?  

A comunicação técnica é cada vez maior, enquanto a comunicação humana é sempre muito difícil. O grande desafio é conciliar essas duas formas de comunicação. É conseguir diminuir a comunicação técnica e tecnológica e dar tempo aos seres humanos para que eles possam ser humanidade. 

Segundo um levantamento da Edelman, 80% dos brasileiros dizem nunca ter visto tamanha falta de civilidade e respeito no país como atualmente. Enquanto isso, a média global é de 65%. Como reverter essa realidade? 

A questão da civilidade é muito importante. Antigamente, não havia escolha, era preciso respeitar os adultos, os idosos. Hoje vivemos uma situação inversa, em que cada um pode e faz o que quiser, sem ser obrigado a nada. A grande regra da civilidade, agora, é respeitar o outro, é a liberdade do outro que me obriga a respeitar. Então tem sempre duas possibilidades de civilidade: a da obrigação e a da civilidade da atenção, do respeito ao outro. O problema é que a gente não se interessa mais pelos outros.  

E o que nos interessa? 

Nós só nos interessamos por nós mesmos. Damos “bananas” à civilidade, que é a primeira aceitação do outro, e é fundamental às relações humanas e sociais. Temos que reintroduzir a civilidade nas relações. Quando dizemos “bom dia, senhor”, “bom dia, senhora”, é um reconhecimento. Isso é muito mais importante do que pensar o tempo inteiro “eu, eu, eu”. Tem um pouco de formalidade? Sim, mas é acima de tudo uma questão humana.   

Por que temos esse nível tão alto de falta de respeito mútuo e de civilidade no Brasil? 

Desconfio um pouco de estatísticas sobre questões tão complicadas, mas dá para pensar numa hipótese. A sociedade brasileira é violenta, com relações desiguais, negros e brancos, e até ontem era muito hierárquica. Pode ser que alguém não queira dizer bom dia ao outro como forma de emancipação e liberdade. Mas a verdadeira emancipação é reconhecer o outro em sua diferença: quando a gente dá bom dia, não quer dizer que seja amor, mas um mínimo de respeito. 

Que abordagens ou práticas levam a boas negociações? 

A condição número um é o respeito do outro. Tem sempre algum grau de desigualdade nas relações. Para negociar, pode existir muita dominação, e a negociação é sempre um progresso humano. Existe muita negociação desigual. Na negociação contemporânea, tenta-se respeitar o outro, relacionar-se com o outro a partir de um pouco de igualdade. Ninguém tem as mesmas opiniões quando negociamos, mas fazemos isso justamente para ter algo em comum: o respeito e interesse de todos. 

Nesse processo, o reconhecimento do outro parece ser um ponto chave, certo? 

É assim que começamos a sair da lógica do ódio e da dominação. E para mostrar como funciona a negociação, basta pegar o exemplo do comércio. Desde o início da humanidade, os homens se batem, se combatem e se massacram. A única situação em que isso muda é quando entra em cena o comércio. Eu tento te dominar na negociação, você tenta me dominar, e finalmente a gente acha valores justos. Quando se está negociando, ninguém tem ilusão em relação ao outro, mas se busca evitar o conflito. Comunicação é comerciar, é negociar. 

Como a capacidade de negociação pode ajudar em um contexto de guerras e impasses diplomáticos, por exemplo? 

A pior das coisas na globalização, na vida, em todos os tempos, é a guerra. Desde sempre, os homens tentam se comunicar para evitar a guerra. Com a democracia, tentamos ter uma comunicação mais igualitária, mas seguimos tendo desigualdade. Um dos riscos da globalização é que, em vez de fortalecer o entendimento entre as pessoas, entre os povos de um país, ela acaba por fortalecer o ódio. Para salvar o conceito de comunicação, é preciso fazer várias coisas. 

Por onde podemos começar? 

Reconhecendo que a comunicação humana é mais difícil do que a técnica – e que a guerra é uma questão humana. Aí, voltamos ao ponto de que a comunicação se baseia no respeito. Atualmente, temos três situações: a comunicação bem-sucedida, em que a gente discute, compartilha e chega à paz – e é muito rara. A segunda questão, muito comum, é a incomunicação, que significa que nós não estamos de acordo. A gente discute, apesar das diferenças, e isso pode ser visto como um progresso. E a terceira situação é a comunicação, que é quando não tem mais jeito, ninguém se entende, e aí acaba em guerra. A questão do século é como negociar para evitar a guerra. É comunicar no sentido da negociação. E acho impressionante o desejo de guerra ser mais forte que o de amor – como percebemos na internet, na televisão. A gente vê os outros e não há vontade de nos aproximarmos deles. A comunicação deve ser sempre um progresso no sentido de reduzir o ódio. 

De onde vem tanta dificuldade em comunicar? 

Alguém diz uma coisa, o outro não escuta ou não está de acordo, então ele responde ao interlocutor, que também não se interessa, não escuta. Faz um século que que a gente vem confundindo essa questão do emissor, da mensagem e do receptor. Tentou-se resumir a um problema principal, que seria a expressão. Mas não é porque eu digo uma coisa que o outro vai estar de acordo. A expressão, a mensagem, não é a comunicação, porque a gente em geral não concorda com o outro. Comunicar é negociar. A gente pode não estar de acordo, mas tem que querer negociar. 

Uma prática comum nas relações é o silêncio como punição. O que o senhor acha desse tipo de atitude? 

A comunicação sempre tem que ser vista como um progresso da democracia, porque ela é um diálogo. É poder falar, argumentar, discutir, dizer o que pensa. O silêncio é sintoma de que alguma coisa não está bem. Hoje, a questão não é a expressão, a possibilidade de falar, porque todo mundo pode falar. O maior problema está na dificuldade de dialogar, de escutar o outro, argumentar. 

Como conciliar a velocidade exigida atualmente com a comunicação pessoal? 

Para se respeitarem, os homens precisam de tempo. Por isso, existe uma grande mentira no advento da internet e do digital. Tudo vai muito mais rápido, é verdade, mas a gente não se compreende. Todo mundo envia mensagens, responde a todos os contatos, mas nessa velocidade o que se estabelece é a incomunicação. As pessoas se interessam pelas relações afetivas, sexuais etc., e é na lentidão que isso acontece, pois toda relação afetiva demanda tempo. Só que mesmo nas relações afetivas, hoje, todos querem respostas rápidas, querem saber onde o outro está, onde foi. Esse tipo de comunicação técnica, mediada pela tecnologia, é fantástica. Veja na política, em que os chefes de Estado sabem de tudo que está acontecendo em todo lugar, mas há cada vez menos tempo para eles se encontrarem, dialogarem. Apesar desses encontros de cúpula – G7, G8, G12, G20 –, eles não conseguem estabelecer uma comunicação no sentido de aprofundamento pessoal, de olho no olho. 

Nesse sentido, as ferramentas mais apoiam ou atrapalham a comunicação? 

Depende do que estamos falando. O telefone, por exemplo: o melhor é quando duas pessoas se falam. Elas se comunicam de maneira simples e nem sempre concordam, mas se comunicam. A televisão e o rádio são cultura de massa, e funcionam como meios muito úteis por permitirem que pessoas diferentes se sintam parte de algo. Já a internet é uma comunicação muito forte entre pessoas que estão em acordo, que formam comunidades. Só que viver em sociedade não é necessariamente viver em comunidade, apenas; tem que sair da bolha. 

Mas hoje o uso das tecnologias é um processo sem volta. 

Faz mais de um século que o progresso tecnológico não para. Mas nem por isso há mais comunicação humana. É paradoxal que quanto mais as pessoas podem contatar umas as outras, menos elas têm a possibilidade de se encontrar. A comunicação humana é frágil, é a mais imperfeita. Também é a única que tem consciência sobre paz e guerra. A comunicação tecnológica é formidável, mas a solução não passa por Google, Apple, Microsoft e demais big techs. A felicidade e o futuro não estão na internet, mas em conseguir que as pessoas se encontrem, se respeitem. A grande ilusão é pensar que, com todas essas ferramentas à disposição, os homens se compreendem mais. O futuro feliz não está na performance tecnológica, mas na comunicação entre seres humanos. Quem faz a guerra não são robôs, são homens. 

*Entrevista originalmente publicada na edição 194 da Revista da PUCRS, lançada no mês de março de 2024. A produção foi cocriada com a República Conteúdo e a edição completa está disponível para download neste link.    

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