Já imaginou ser possível extinguir memórias de medo por meio de uma modificação química no DNA? Um estudo realizado no Instituto do Cérebro da Universidade de Queensland, da Austrália, que teve a colaboração de pesquisadores da Escola de Medicina da PUCRS e do Instituto do Cérebro do RS, aponta uma direção. Ele foi publicado em fevereiro na mais importante revista científica especializada em neurociência do mundo, a Nature Neuroscience.
O estudo descobriu uma modificação química no DNA que aumenta a habilidade de extinguir o medo. A descoberta abre uma perspectiva inovadora que tem sido apontada como o caminho para o futuro, a dos tratamentos com terapia gênica. Por meio dela, seria possível silenciar genes relacionados ao processamento do medo e assim auxiliar pessoas que sofrem com fobias ou Transtorno de Estresse Pós-Traumático.
Pesquisador líder lecionou na PUCRS
O primeiro autor dessa pesquisa é o pesquisador Xiang Li, aluno do professor Timothy Bredy, responsável pela pesquisa publicada na Nature Neuroscience. Bredy esteve na PUCRS como professor visitante ao longo dos anos de 2014, 2015 e 2016, e explica que, embora o medo seja um importante mecanismo de sobrevivência, a capacidade de inibi-lo quando ele não é mais necessário também seria. “A extinção do medo funciona como um equilíbrio do processamento do medo. Envolve a criação de novas memórias com elementos ambientais similares que competem com a memória original do medo”, afirma Bredy no site da Universidade Queensland.
Pesquisas mostraram que uma pequena região do córtex pré-frontal (PFC) desempenha um papel crítico nos processos de aprendizagem e memória da extinção do medo, e a atividade dos neurônios nessa região está sob rígido controle epigenético. “O DNA não é estático. Mudanças químicas no DNA agem como um interruptor que pode aumentar ou diminuir a expressão de um gene”, explica o professor Bredy.
Pesquisa experimental
No experimento, foram colocados camundongos em uma caixa onde ouviam um som específico, que era imediatamente seguido por um leve choque nos pés. Os camundongos rapidamente associavam o som ao choque e “congelavam” quando o ouviam. Para encorajar a extinção do medo, os animais eram então colocados em uma outra caixa, onde repetidamente ouviam o mesmo som, mas não recebiam nenhum choque nos pés. Quando os camundongos eram devolvidos à caixa original, eles não tinham mais medo do som, pois haviam extinguido essa memória.
Os pesquisadores examinaram o DNA dos neurônios do córtex pré-frontal nesses animais e descobriram a presença de uma modificação química na adenosina, a N6-metil-2-desoxiadenosina (m6dA), em mais de 2800 locais em todo o genoma. Por muito tempo, acreditava-se que a citosina (C) era a única base de DNA que poderia ser modificada via metilação. Mas agora a pesquisa deixou claro que a adenosina (A) também pode ser marcada quimicamente.
A equipe descobriu que a formação das memórias de extinção do medo necessita da modificação da adenosina, que aumenta a atividade de certos genes. Em outras palavras, essa mudança epigenética no DNA desses neurônios só ocorre durante a extinção do medo.
“Compreender o mecanismo fundamental de como funciona a regulação genética associada à extinção do medo pode fornecer alvos futuros para intervenção terapêutica em transtornos de ansiedade relacionados ao medo”, afirma Bredy.
Participação da PUCRS no estudo
A colaboração da PUCRS se deu por meio do grupo interdisciplinar Neurociência Cognitiva do Desenvolvimento (DCNL), que faz parte da Escola de Medicina da PUCRS. Liderado pelo psiquiatra Rodrigo Grassi-Oliveira, que é também pesquisador do Instituto do Cérebro do RS, o grupo colabora com pesquisadores em diferentes áreas ao redor do mundo.
Grassi-Oliveira esteve primeiramente na Austrália para fazer seu pós-doutorado e iniciou a colaboração entre ambas as instituições. Depois, além de ter trazido o Professor Bredy para a PUCRS por três vezes, também enviou dois estudantes para o laboratório do próprio Bredy, que na época estava trabalhando na Universidade da Califórnia, em Irvine. “Iniciei um projeto de colaboração com o laboratório na Austrália para poder trocar expertise na área de neuroepigenética e propiciar o intercâmbio de alunos e professores entre as duas instituições”, afirma Grassi-Oliveira.
A participação na pesquisa se deu principalmente através de Thiago Viola e Luis Eduardo Wearick, atualmente alunos de pós-doutorado da Escola de Medicina da PUCRS e do InsCer RS, que participaram desta pesquisa como parte de seus doutorados sanduíche, fazendo experimentos por um ano inteiro, em virtude do projeto Pesquisador Visitante Especial, do CNPq – Ciências Sem Fronteiras.
“Um dos objetivos da nossa colaboração era realizar um treinamento em técnicas de pesquisa em epigenética e participar dos projetos que eles tinham em andamento. É muito gratificante ter tido a oportunidade de trabalhar com uma equipe de diversas universidades e laboratórios do mundo e ter contribuído em um trabalho tão importante como este”, afirma Wearick. Viola destaca o conhecimento que vai poder aplicar no Brasil. “Estou muito feliz por ter contribuído com este trabalho e por ter conseguido adquirir um conhecimento muito específico sobre o tema da neuroepigenética, o qual pude trazer para o nosso grupo de pesquisa da PUCRS”.
O Brasil é o país com as maiores estimativas de maus-tratos contra crianças no mundo. O dado é do estudo The Influence of Geographical and Economic Factors in Estimates of Childhood Abuse and Neglect Using the Childhood Trauma Questionnaire: A Worldwide Meta-Regression Analysis, divulgado na Child Abuse and Neglect, publicação oficial da International Society for the Prevention of Child Abuse and Neglect, vinculada à Organização das Nações Unidas e à Organização Mundial de Saúde (OMS). Foram pesquisados dados de abuso sexual, físico e emocional e negligência física e emocional publicados em cerca de 30 países. “Existe uma relação direta entre o Produto Interno Bruto (PIB) do país analisado e as estimativas de negligência física. Quanto menor o índice econômico, maior a taxa deste tipo de maus-tratos. Apesar do PIB do Brasil não estar entre os mais baixos, o País mostra estimativas muito altas de negligência infantil”, afirma o coordenador do trabalho, professor do Programa de Pós-Graduação em Pediatria e Saúde da Criança e do Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS Rodrigo Grassi-Oliveira. Segundo o pesquisador, a negligência física é caracterizada por atos de abandono da criança, privando-a de alimentos, vestuário e cuidados com a saúde.
Os malefícios futuros para a saúde das crianças que passam por estes tipos de violência são inúmeros, desde um maior risco para doenças mentais e dependência química até doenças metabólicas como diabetes e obesidade. “É preciso haver uma mudança de valores para a sociedade. Se você investir no cuidado parental hoje, futuramente a preocupação e gastos com estes desfechos será menor“, acredita o pesquisador. Para Grassi, o motivo do péssimo resultado registrado no Brasil está na quase ausência de recursos empregados em programas de prevenção da violência contra a criança, além da cultura mais permissiva, que não acredita na gravidade das consequências geradas pela exposição de crianças a situações adversas. Outro motivo é o fato do território ser muito grande, dificultando o controle de recursos financeiros voltados para o tratamento e prevenção de casos de abuso e negligência infantil. O professor ressalta, também, a ineficácia da máquina pública e privada, o número insuficiente de centros de atendimentos às vítimas de violência e a falta de formação adequada na área.
Para ilustrar os resultados, os pesquisadores fizeram um mapa que mostra as estimativas relatadas pelas populações investigadas em cada país. Usando uma escala de cor que ia do vermelho (altas taxas de abuso e negligência), passando pelo amarelo (estimativas moderadas) até o verde (baixos escores) os autores coloriram cada país de acordo com a estimativa de maus-tratos na infância identificada. Na Suécia, por exemplo, as estimativas são reduzidas, assim como em praticamente todos os países da Europa. Já nos Estados Unidos, a cor é a amarela e no Brasil vermelha. Nos resultados encontrados na China, uma surpresa: as taxas de negligência e abuso relatadas são baixas, apesar da OMS identificar o trabalho infantil e a migração como graves problemas. “Acreditamos que a entrevista utilizada para avaliar maus-tratos possa ter inibido muitas pessoas de identificarem situações adversas ocorridas na infância como formas de abuso ou negligência, em virtude dos aspectos culturais. A escala não avalia trabalho infantil e, mesmo que avaliasse, esse poderia não ser interpretado como uma situação abusiva”, afirma. Grassi acredita que os resultados refletem a questão cultural de cada local: “Tudo depende da forma como cada povo educa e cuida de suas crianças”, ressalta.
O pesquisador já trabalha com projetos sobre vitimização infantil há muitos anos e, futuramente, pretende iniciar um diálogo com órgãos governamentais como a Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude, visando a discussão desses resultados. Também planeja iniciar outro estudo, em âmbito nacional e utilizando outras medidas, para aprofundar esses dados. Segundo Grassi, a recomendação da OMS é que seja promovida a capacitação de pessoas para trabalhar na área, possibilitando que as políticas públicas sejam efetivamente colocadas em prática por profissionais habilitados para isso. Para isso, coordena na PUCRS o curso de especialização à distância Abordagens da Violência Contra Crianças e Adolescentes. “A nossa expectativa é de qualificar profissionais com diversas formações, em especial pessoas que trabalham em Conselhos Tutelares e Centros de Atendimento Psicossocial”, afirma. A primeira turma tem aulas desde abril.
Os pesquisadores tiveram acesso a resultados já publicados em pesquisas que utilizaram o instrumento chamado Childhood Trauma Questionnaire (CTQ), um dos instrumentos mais importantes na avaliação de maus-tratos no mundo. O teste passou por adaptações em vários países, sendo que a versão brasileira foi adaptada por Grassi, podendo ser aplicado em adolescentes e adultos. O CTQ questiona a frequência com que os entrevistados passaram por situações de abuso e negligência até os doze anos de idade. A partir destes dados, o grupo da PUCRS fez a compilação e análise estatísticas dos dados obtidos em todos os países incluídos no estudo.