No Brasil, 55% da população – aproximadamente de 116 milhões de pessoas – vive com algum grau de insegurança alimentar. Deste total, cerca de 19 milhões de brasileiros passam fome. Os dados, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, traduzem em números o problema social e econômico de acesso pleno à alimentação. Nesse cenário, ações de combate à fome precisam ser urgentes e concretas.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Escola de Humanidades, o pesquisador André Salata aponta que a atual crise econômica do País é um componente importante, mas não explica a totalidade desse quadro alarmante.
“A verdade é que, mesmo diante de uma crise aguda como essa, a sociedade brasileira teria recursos de sobra para impedir que milhares de pessoas ficassem em situação de insegurança alimentar. Já antes da crise tínhamos políticas sociais com tecnologia eficiente para enfrentar essa questão. Mesmo com os efeitos da pandemia, que fez a renda do trabalho dos mais pobres cair mais de um terço, teríamos condições de evitar essa tragédia social, porém fizemos menos do que o necessário”, alerta.
Coordenador do Boletim – Desigualdade nas Metrópoles, realizado em parceria com o Observatório das Metrópoles e a Rede de Observatórios da Dívida Social na América Latina (RedODSAL), Salata também destaca que os dados do estudo evidenciam a perda de renda entre a população mais pobre, acentuando a insegurança alimentar nesse estrato.
“O percentual de pessoas em nossas grandes cidades que viviam com renda domiciliar per capita do trabalho abaixo de 1/4 do salário-mínimo atingiu 29% no pico da pandemia. E um dos resultados disso é o quadro de insegurança alimentar que tem atingido milhares de famílias”.
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Para Izete Bagolin, professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Economia do Desenvolvimento da Escola de Negócios, enquanto sociedade é importante atuar não apenas para mitigar o cenário atual, mas também em prol do combate das diferentes formas de insegurança alimentar. “É inadmissível que o Brasil, referência mundial na produção e um dos maiores exportadores de alimentos, não é capaz de alimentar a sua população. A sociedade precisa apoiar políticas públicas que garantam o acesso aos alimentos”.
A insegurança alimentar, em todos os níveis, possui consequências individuais e sociais, que vão desde efeitos na saúde e bem-estar até impactos na produtividade, no trabalho e no desempenho escolar. De acordo com o relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo, publicado pela Organização das Nações Unidas (ONU), estima-se que em 2020 mais de 149 milhões de crianças menores de cinco anos sofriam de desnutrição crônica.
“O problema da fome torna essas consequências mais severas e, muitas vezes, incapacitantes e irreversíveis. Por exemplo, crianças que passam fome podem ter seu desenvolvimento comprometido, resultando em dificuldades de aprendizagem e mais problemas de saúde. Isso impacta individualmente, mas também tem efeitos sociais, como a perda de potencial humano e maiores gastos com educação e saúde”, salienta Izete.
Segundo o professor André Salata, para reverter o cenário é fundamental ampliar programas sociais e possibilitar que as famílias dos estratos mais pobres tenham acesso a melhores oportunidades no mercado de trabalho, e que tenham condições de aproveitá-las.
“Não é somente a fome, mas todas as consequências que a fome traz. É uma parcela significativa da população brasileira para a qual alguns dos direitos mais básicos de cidadania estão sendo negados. Permitir que milhares de famílias fiquem em situação de insegurança alimentar é prejudicial a todos, ao nosso presente e ao nosso futuro enquanto sociedade”.
A partir do projeto Porto Alegre contra a Fome – União de Todos/Projeto Todos Juntos, proposto pela PUCRS, juntamente com a Arquidiocese da Capital, diferentes instituições uniram esforços para o combate ao desperdício de alimentos e a doação de excedentes próprios para consumo.
Baseado na iniciativa, em outubro de 2020, o Ministério Público do Rio Grande do Sul assinou um Protocolo de Intenções com instituições e/ou estabelecimentos comerciais que atuam na Capital para dar visibilidade à nova Lei de Doação de Excedentes de Alimentos, a Lei 14.016/2020.
Reitor da PUCRS, o irmão Evilázio Teixeira destaca que a ação tem como propósito garantir o acesso à alimentação, principalmente para a população vulnerável. “Nossa expectativa é colhermos resultados concretos imediatos e trabalharmos para no futuro termos uma lei como a francesa, em que toda a cadeia produtiva contribui para até 2025 reduzir pela metade o desperdício de alimentos naquele país. Também nos inspira o objetivo da Agenda 2030, que espera acabar com a fome e garantir o acesso de todas as pessoas, em particular os pobres e pessoas em situações vulneráveis, incluindo crianças, a alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo o ano”.
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Durante todo o ano, é possível realizar doações de alimentos para diferentes instituições que destinam as arrecadações para famílias em situação de vulnerabilidade social e ajudam a combater a insegurança alimentar. Entre essas entidades, está a Rede de Bancos de Alimentos do Rio Grande do Sul, que abrange 29 municípios do Estado. As doações podem ser realizadas online, pelo site.
“De forma individual podemos colaborar muito, através de doações, de parcerias com o terceiro setor, entre outras ações. Isso faz diferença sim, e é preciso que seja encorajado”, destaca o professor André Salata.
Numa civilização onde tudo é medido em termos de operosidade e eficiência, onde a busca do sucesso e do êxito tornaram-se o novo imperativo categórico, causa perplexidade os dados alarmantes do aumento da fome entre a população brasileira. Cenas de pessoas disputando osso e retirando restos de alimentos do caminhão do lixo nos espantam. Mas, se de um lado a fome impressiona e incomoda, ela continua sendo uma espécie de mistério sombrio e insondável, pois não se trata de uma fatalidade, uma vez que a agricultura mundial poderia alimentar praticamente duas vezes a população atual. Justamente por isso, imagens como as descritas nocauteiam a nossa tão acomodada civilização.
Palavras como “milhões-de pessoas-passam fome” deveriam ao menos provocar reações para além de posts em redes sociais ou artigo como esse; deveriam causar alguma atitude. Mas as palavras não conseguem mais provocar; elas próprias emudeceram, pois perderam seu sentido em meio à agitação, gerando uma espécie de paralisia frenética. Não há falta de informação. Há excesso. Então, por que o imobilismo? A produção de alimentos aumenta. O excesso é pretexto para o quê se milhões de pessoas seguem excluídas da mesa? A fome é o adverso da produção. Na excepcional obra A Fome, Martín Caparrós alerta que a comida foi monetizada, se transformou em investimento, como petróleo, o ouro. Quando mais alto o preço, melhor o investimento. Quanto melhor o investimento, mais cara a comida. E os que não podem pagar o preço que o paguem com a fome, diz o autor. Em outras palavras: o que antes era um mercado para produtores e consumidores, virou um lugar para o jogo financeiro e especulação.
O problema é conhecido. Escandaloso. Estamos conectados a ele. Mas parece não nos afetar suficientemente, como que estivéssemos despidos de qualquer vínculo relacional com nossos irmãos e irmãs brasileiros que morrem pela “falta” daquilo que a sociedade e o Estado têm em abundância. Uma realidade como essa não se resolve somente com ações individuais ou grandes programas governamentais. É algo sistêmico. Contudo, ações coletivas fazem diferença. Cito como exemplo o projeto Porto Alegre contra a fome/Todos Juntos, do qual participam dezenas de organizações que aderiram à Lei de Doação de Excedentes de Alimentos, que autoriza os estabelecimentos que produzem e fornecem alimentos, produtos industrializados ou refeições prontas a doar os excedentes não comercializados e ainda próprios para o consumo humano. Um projeto como esse pode não resolver o problema da fome no Brasil, mas encherá os pratos de todos que necessitam em Porto Alegre. E se todas as cidades fizerem algo semelhante, não veremos mais pessoas e ratos em par de igualdade.
*Texto originalmente publicado no Jornal Zero Hora
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