“Eu amo a PUCRS.” Essa frase, dita por uma espectadora na saída do Salão de Atos na noite de terça-feira, 2 de outubro, expressa um pouco o que foi a presença da atriz Fernanda Montenegro na Universidade. Um clima de emoção e contentamento tomou conta das mais de 1.500 pessoas que presenciaram a homenagem. Enquanto alguns exaltavam a dupla que ela fez com o maior dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues, na leitura dramática de seus escritos, outros apenas sorriam – e não escondiam os olhos marejados. O espetáculo e o reconhecimento integram a programação que celebra os 70 anos da PUCRS.
Aplaudida de pé por seis vezes, Fernanda saiu do Salão de Atos com o troféu Mérito Cultural da PUCRS depois de ler umas palavras de Albert Camus. “O ator é o que mais percebe, entre os homens, que tudo deve morrer um dia. (…) Torna-se um ansioso viajante das almas. Ilustra a verdadeira arte de que não existem fronteiras entre quem quer ser e é.” Narrou uma fábula de um velho sapateiro que pediu uma audiência com o reitor de uma poderosa universidade para ensinar a fazer sapato na instituição. “Eu me sinto um pouco sapateiro. Entrei para a universidade, essa estrutura imensa de saber. E ele não teve plateia. Ser ator é uma profissão abstrata. Fazemos mal e bem. Às vezes deixamos a vida lá fora. Vou guardar para sempre esse momento. Nunca esperei isso”, afirmou a atriz.
O reitor Ir. Evilázio Teixeira, ao entregar o troféu, destacou que Fernanda Montenegro, com sua arte e vocação, oferece novos saberes e mais beleza, esta vista como “potência amorosa ao tocar o coração e o espírito”. Na apresentação do prêmio, a atriz Deborah Finocchiaro lembrou que, quando a PUCRS nascia como universidade, há 70 anos, Fernanda já trilhava seus passos para a cultura. “Aprendemos com ela o rito de sensibilidade que remove os cascos e nos salva do habitual descaso do que está ao redor. (…) Viver com arte é chegar ao outro, transformando o sofrimento em sublimação.”
Por uma hora e meia, Fernanda Montenegro deu voz às dores e angústias do “anjo pornográfico” e “autor e jornalista inconveniente”, como o próprio Nelson Rodrigues se via. Sob o som da ária da ópera de Leoncavallo, começou a leitura contando como ele se tornou carioca, vindo com a família de Pernambuco. Narrou seu fascínio pelo amor e pela morte, suas posições políticas, a fome depois que a Revolução de 30 empastelou o jornal da família Correio da Manhã, o episódio em que comeu feijão escanteando uma barata, a luta contra a tuberculose (e os tratamentos nos sanatórios) e as tragédias pessoais (presenciou inclusive o assassinato do irmão na redação do diário Crítica e teve o filho Nelsinho preso e torturado durante o regime militar). Nelson revela sua primeira Vida como ela é, a vivência como repórter policial, quando “em três meses, você adquire a experiência de um Balzac” e se torna íntimo dos defuntos, a apoteose que alcançou com Vestido de noiva, a censura de Álbum de família, “uma peça suicida”, que passou 21 anos encarcerada, e de Toda nudez será castigada. “Peçam tudo, menos que renuncie à atrocidade dos meus dramas”, clamou na voz de Fernanda.
A atriz deu sentido às frases do teatrólogo usadas até hoje: “Toda unanimidade é burra”, “A experiência da fome é importante para o autor e o revolucionário. Não acredito neles bem alimentados”, “O amor não morre. Se acaba, não era amor” ou “Todo autor é autobiográfico”. A leitura terminou com Nelson relatando os oito meses em que Fernanda, “musa sereníssima”, ligava para a redação pedindo que ele escrevesse uma peça para seu grupo, o Teatro dos Sete. “Subi no meu prestígio quando entreguei Beijo no asfalto, uma história do amor derrotado.” Pôde então dar sua grande contribuição ao teatro brasileiro. A insistência de Fernanda ainda rendeu Toda nudez… e A serpente.
A leitura Nelson Rodrigues por ele mesmo é uma adaptação, feita por Fernanda, do livro homônimo organizado pela filha de Nelson, Sônia Rodrigues.
Prevista no Estatuto e Regimento Geral da PUCRS, a distinção simboliza o reconhecimento institucional de uma personalidade do meio cultural. O homenageado é alguém que tenha transformado a sua vida numa trajetória de defesa da cultura, enquanto instrumento de humanização e educação.
“O troféu traduz um gesto de aplauso, representando a profunda admiração diante de um eminente artista da sociedade brasileira. A honraria está inserida nas diversas ações que buscam transformar a Universidade num polo cultural. Nada mais adequado do que iniciar o nosso aplauso com a maior atriz da história do nosso país”, completa o diretor do Instituto de Cultura da PUCRS, Ricardo Barberena.
A entrega do troféu será anual. A peça foi planejada pelo artista Bruno Salvaterra, tem 26 cm de altura e é fundida em alumínio fosco, com base em madeira.
Na noite de segunda-feira, 1º de outubro, a atriz lançou o livro Fernanda Montenegro: Itinerário fotobiográfico, com textos e imagens (algumas fotos inéditas de seu acervo pessoal) que contam sobre sua carreira. As 500 páginas são divididas em onze capítulos. Lançada pelas Edições Sesc São Paulo, a obra conta com depoimentos de escritores, diretores, críticos de arte, atores e amigos. “É uma noite especial. À PUCRS, na pessoa do reitor, Ir. Evilázio Teixeira, e do diretor do Instituto de Cultura, Ricardo Barberena, a minha gratidão imensa por esta noite abrigando o lançamento deste livro sobre os meus 75 anos de vida pública. Ele resulta de quatro anos de produção, que envolve teatro, cinema e televisão. Quase um século de convívio com colegas e plateia. Agradeço a Deus, meus pais, minha origem e por estar aqui com vocês”, destacou a atriz.
Confira alguns momentos da sessão de autógrafos: