Neste momento de pandemia, em que a espera parece não ter fim, precisamos nos manter críticos e vigilantes em relação às ideologias e práticas que reduzem o ser humano, que o classificam por razões forjadas na mentira e no desamor. Lembro-me das palavras de um sobrevivente ao campo de concentração que nos deixou um legado imensurável: Viktor Frankl, que em 1984 esteve na PUCRS para receber o título de Doctor Honoris Causa: “pode-se tirar tudo de um homem exceto uma coisa: a última das liberdades humanas – escolher a própria atitude em qualquer circunstância. Se percebemos que a vida realmente tem um sentido, percebemos também que somos úteis uns aos outros”.
Cuidado e cura andam juntos, na origem da primeira palavra está o significado da segunda. Cura é um dos sinônimos eruditos de cuidado, presente na famosa obra Ser e Tempo, de Martin Heidegger. Em seu sentido mais antigo, cura se escrevia em latim coera e se usava em um contexto de relações humanas de amor e de amizade. Cura queria expressar a atitude de cuidado, de desvelo, de preocupação e de inquietação pelo objeto ou pela pessoa amada. O cuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo então a dedicar-me; disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de suas conquistas, enfim, de sua vida.
Não habitamos o mundo somente por meio de nosso trabalho. Outra forma de ser no mundo se realiza pelo cuidado – o que não se opõe ao trabalho, mas lhe confere uma modalidade diferente, onde a relação com as pessoas não é sujeito-objeto, mas sujeito-sujeito. A relação não é de domínio, mas de convivência. Não é pura intervenção, mas principalmente interação e comunhão.
Um dos desafios para o ser humano é combinar trabalho com cuidado. Eles não se opõem, mas se compõem. Quando tentados a criar dicotomias na vida diante de ameaças e incertezas, recordemos que somos seres de relações ilimitadas, de criatividade, ternura, cuidado, de espiritualidade; portadores de um projeto sagrado e infinito. Em tempo de pandemia é isso que precisamos. Humanizar o mundo torna-se uma questão crucial e decisiva para o destino do planeta e de seus habitantes. Não há cura fora de nossas próprias fragilidades e potencialidades para transformar a natureza e a nós mesmos.
Uma pesquisa desenvolvida pelo professor da Escola de Humanidades Luís Evandro Hinrichsen aponta exigências éticas para exercício do cuidado e mostra que esta atitude, da qual todos dependem para existir, corresponde à essência da pessoa. “O cuidado implica intencionalidade, em estar presente de fato, ser atento e acolhedor. Reúne todas as características do ser humano”, afirma Hinrichsen. O estudo foi desenvolvido durante seu mestrado em Teologia e teve como base teórica a antropologia de Heidegger, que aponta para a filosofia de cuidado, além da experiência de São Francisco de Assis presente nos textos do século 13.
O exercício do cuidado requer simetria, proporcionando ao outro a capacidade de cuidar de si, e pressupõe exigências éticas no seu exercício. Cuidado é proximidade, comunicação verbal e não-verbal, promoção da autonomia do outro, reconhecimento desse como pessoa, gestos e atitudes. “Somos dotados de sensibilidade, de inteligência. É uma atitude a ser desenvolvida. Temos que aprender, numa comunidade cada vez mais global e planetária, a transitarmos da violência para a cultura de paz. Isso supõe um passo para além da própria tolerância, na direção da solidariedade”, diz Hinrichsen.
Em todas as profissões, o cuidado deve estar presente, unindo formação cidadã, técnica e humana. Para Hinrichsen, o momento atual é de fragmentação do conhecimento e de cultivo exagerado de si próprio, o que leva à necessidade de descobrir o outro, reconhecê-lo como pessoa e como portador de direitos inalienáveis. “Nessa direção, o cuidado se liga à educação, à formação ética e com responsabilidade”, explica.
Na formação universitária, é preciso atenção interdisciplinar e formação para o cuidado. “Na academia, quem deve explicitar isso é a ética, que tem o compromisso de ser transversal, permear todos os cursos”, salienta professor orientador, Frei Luiz Carlos Susin. Muitas vezes, não é exercido de forma consciente porque as pessoas não estão preparadas. “Nos formamos tecnicamente e descuidamos da nossa formação humana integral. O cuidado como atitude deveria ser orientador de qualquer ação pedagógica, estar presente em todos os currículos, ao menos implicitamente”, ressalta Hinrichsen.
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