Numa civilização onde tudo é medido em termos de operosidade e eficiência, onde a busca do sucesso e do êxito tornaram-se o novo imperativo categórico, causa perplexidade os dados alarmantes do aumento da fome entre a população brasileira. Cenas de pessoas disputando osso e retirando restos de alimentos do caminhão do lixo nos espantam. Mas, se de um lado a fome impressiona e incomoda, ela continua sendo uma espécie de mistério sombrio e insondável, pois não se trata de uma fatalidade, uma vez que a agricultura mundial poderia alimentar praticamente duas vezes a população atual. Justamente por isso, imagens como as descritas nocauteiam a nossa tão acomodada civilização.
Palavras como “milhões-de pessoas-passam fome” deveriam ao menos provocar reações para além de posts em redes sociais ou artigo como esse; deveriam causar alguma atitude. Mas as palavras não conseguem mais provocar; elas próprias emudeceram, pois perderam seu sentido em meio à agitação, gerando uma espécie de paralisia frenética. Não há falta de informação. Há excesso. Então, por que o imobilismo? A produção de alimentos aumenta. O excesso é pretexto para o quê se milhões de pessoas seguem excluídas da mesa? A fome é o adverso da produção. Na excepcional obra A Fome, Martín Caparrós alerta que a comida foi monetizada, se transformou em investimento, como petróleo, o ouro. Quando mais alto o preço, melhor o investimento. Quanto melhor o investimento, mais cara a comida. E os que não podem pagar o preço que o paguem com a fome, diz o autor. Em outras palavras: o que antes era um mercado para produtores e consumidores, virou um lugar para o jogo financeiro e especulação.
O problema é conhecido. Escandaloso. Estamos conectados a ele. Mas parece não nos afetar suficientemente, como que estivéssemos despidos de qualquer vínculo relacional com nossos irmãos e irmãs brasileiros que morrem pela “falta” daquilo que a sociedade e o Estado têm em abundância. Uma realidade como essa não se resolve somente com ações individuais ou grandes programas governamentais. É algo sistêmico. Contudo, ações coletivas fazem diferença. Cito como exemplo o projeto Porto Alegre contra a fome/Todos Juntos, do qual participam dezenas de organizações que aderiram à Lei de Doação de Excedentes de Alimentos, que autoriza os estabelecimentos que produzem e fornecem alimentos, produtos industrializados ou refeições prontas a doar os excedentes não comercializados e ainda próprios para o consumo humano. Um projeto como esse pode não resolver o problema da fome no Brasil, mas encherá os pratos de todos que necessitam em Porto Alegre. E se todas as cidades fizerem algo semelhante, não veremos mais pessoas e ratos em par de igualdade.
*Texto originalmente publicado no Jornal Zero Hora
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Neste momento de pandemia, em que a espera parece não ter fim, precisamos nos manter críticos e vigilantes em relação às ideologias e práticas que reduzem o ser humano, que o classificam por razões forjadas na mentira e no desamor. Lembro-me das palavras de um sobrevivente ao campo de concentração que nos deixou um legado imensurável: Viktor Frankl, que em 1984 esteve na PUCRS para receber o título de Doctor Honoris Causa: “pode-se tirar tudo de um homem exceto uma coisa: a última das liberdades humanas – escolher a própria atitude em qualquer circunstância. Se percebemos que a vida realmente tem um sentido, percebemos também que somos úteis uns aos outros”.
Cuidado e cura andam juntos, na origem da primeira palavra está o significado da segunda. Cura é um dos sinônimos eruditos de cuidado, presente na famosa obra Ser e Tempo, de Martin Heidegger. Em seu sentido mais antigo, cura se escrevia em latim coera e se usava em um contexto de relações humanas de amor e de amizade. Cura queria expressar a atitude de cuidado, de desvelo, de preocupação e de inquietação pelo objeto ou pela pessoa amada. O cuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo então a dedicar-me; disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de suas conquistas, enfim, de sua vida.
Não habitamos o mundo somente por meio de nosso trabalho. Outra forma de ser no mundo se realiza pelo cuidado – o que não se opõe ao trabalho, mas lhe confere uma modalidade diferente, onde a relação com as pessoas não é sujeito-objeto, mas sujeito-sujeito. A relação não é de domínio, mas de convivência. Não é pura intervenção, mas principalmente interação e comunhão.
Um dos desafios para o ser humano é combinar trabalho com cuidado. Eles não se opõem, mas se compõem. Quando tentados a criar dicotomias na vida diante de ameaças e incertezas, recordemos que somos seres de relações ilimitadas, de criatividade, ternura, cuidado, de espiritualidade; portadores de um projeto sagrado e infinito. Em tempo de pandemia é isso que precisamos. Humanizar o mundo torna-se uma questão crucial e decisiva para o destino do planeta e de seus habitantes. Não há cura fora de nossas próprias fragilidades e potencialidades para transformar a natureza e a nós mesmos.