Com o planeta em constante mudança devido à ação humana, entender e mensurar esses impactos é de extrema importância, sendo este uma das principais metas inclusas nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU). Para isso, é fundamental o desenvolvimento de pesquisas ecológicas de caráter sistemático e permanente. Neste contexto, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) lançou, em 1999, o programa de Pesquisa Ecológica de Longa Duração (PELD), que também é cofinanciado por agências estaduais. Há vários sítios PELD em todo o Brasil, sendo um deles localizado na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Pró-Mata, uma área de conservação ambiental da PUCRS na serra gaúcha e conduzida pelo Instituto do Meio Ambiente (IMA).
Um dos grupos de seres vivos que são objetos de pesquisa no PELD Pró-Mata são as aranhas. Elas são classificadas como aracnídeos, assim como os ácaros e os escorpiões. Os aracnídeos, juntamente com os insetos, centopeias e crustáceos, formam o grupo dos animais artrópodes, o maior do mundo, com mais de um milhão e espécies conhecidas. Os aracnídeos, apesar de serem mal-vistos pela maioria das pessoas por serem considerados pragas agrícolas e vetores de doenças, possuem diversas funções nos ecossistemas, muitas delas benéficas e até mesmo essenciais para a vida humana. Muitos deles são polinizadores e predadores de outras espécies que constituem populações de pragas.
Nesse quesito, o destaque vai para as aranhas, que estão entre os maiores predadores de outros artrópodes. O professor Renato Augusto Teixeira, do Programa de Pós-Graduação (PPG) em Ecologia e Evolução da Biodiversidade, explica o foco da pesquisa realizada no PELD sobre os aracnídeos: o que acontece com a comunidade de aranhas em ambientes fechados, isto é, florestais, em contrapartida ao que acontece com essas comunidades em ambientes campestres, ou seja, em áreas abertas.
“Uma vez que estamos passando por mudanças climáticas e o aquecimento global, será que a floresta não serviria como um buffer? Serviria para tamponar um pouco essa mudança e reduzindo essa temperatura em relação ao campo, que é uma área aberta e que ganha e perde calor com mais facilidade. Se for o caso, nossa expectativa é que as comunidades nos dois tipos de ambientes mudem de forma diferente. Que mude pouco ou nada nas florestas e muito nos campos, devido às mudanças climáticas”, pontua.
Devido aos seus comportamentos de caçadoras, as aranhas são responsáveis por ajudar a manter as populações de artrópodes numericamente estáveis. No entanto, uma boa parte desses comportamentos depende de seus habitats permanecendo sem grandes alterações. Esses ambientes costumam ser dinâmicos, porém parte deste dinamismo está ligado a fatores antropogênicos, ou seja, relacionados à ação humana. E, até o momento, pouco se sabe sobre o impacto que isso pode causar em alguns organismos. “Um dos outros projetos que temos no PELD é o de entender a sucessão da comunidade de aranhas no espaço e ver como elas recolonizam o ambiente uma vez que forem retiradas de lá”, conta Renato.
Tiffany Maroco da Silva, aluna do PPG em Ecologia e Evolução da Biodiversidade que atua nas pesquisas do PELD, explica que o objetivo deste projeto é testar se as aranhas conseguem recolonizar um espaço em um período curto, de aproximadamente cinco horas.
“Em várias trilhas nos campos do Pró-Mata, em um trecho de 150 metros, retiramos as teias para testar se as aranhas conseguem refazê-las nesse período, e no trecho subsequente retiramos as próprias aranhas. Com esse tratamento, tentamos responder a algumas perguntas: ‘as aranhas conseguem estabelecer novas teias nesse período?’, ‘se sim, foram feitas por indivíduos das mesmas espécies que já estavam lá ou são novas espécie que vão se aproveitar desse nicho vazio e recolonizá-lo?’”, comenta Tiffany.
Durante as saídas para as trilhas, os pesquisadores coletam dados importantes para entender esse processo de recolonização, como altura das teias, distância da trilha e do início dela, o tipo de teia (se são irregulares ou orbiculares, já que são feitas por grupos diferentes de aranhas). Depois de recolhidos, os materiais com esses dados são levados ao laboratório para triagem.
O professor Renato acrescenta, ainda, que os pesquisadores do PELD trabalham com uma terceira linha de pesquisas, o DNA Barcoding. Nesta linha, são retiradas pequenas amostras de tecido das aranhas que são coletadas a fim de criar um banco de informações genéticas das espécies que habitam o sítio do Pró-Mata. “Identificação por meio de DNA requer que tenhamos um referencial para comparação. Quanto mais espécies fizermos o barcoding, mais fácil será para identificá-las”, ressalta.
“O DNA Barcoding também se liga a outros projetos do PELD, como o de DNA Ambiental. Todo o material coletado nas outras pesquisas será armazenado na coleção de aracnídeos e miriápodes do Museu de Ciência e Tecnologia (MCT) da PUCRS. Nos laboratórios do PELD, o material é separado entre as diferentes espécies ou morfoespécies de aranhas e depois utilizado para diferentes trabalhos, como a listagem de espécies presentes no sítio do Pró-Mata ou para outros estudos ecológicos, como o da sucessão das aranhas”, finaliza Renato.
Nelson Ferreira Fontoura, professor da Escola de Ciências da Saúde e da Vida e diretor do IMA, destaca a importância do PELD na realização de pesquisas ecológicas que contribuem para o entendimento das consequências da ação humana no planeta.
“Nós temos vário grupos trabalhando no PELD Pró-Mata, incluindo alunos de pós-graduação a nível de doutorado, de mestrado e alunos de graduação fazendo sua iniciação científica. Hoje temos grupos trabalhando com aves, mamíferos, anfíbios, abelhas, aranhas e também com DNA ambiental, incluindo florestas e campos. Esses projetos em conjunto, de forma continuada, podem nos fornecer, em um futuro de médio a longo prazo, uma ideia muito clara de como esse ambiente está evoluindo, se a diversidade segue constante, aumentando ou diminuindo em função dos impactos humanos”, explica.
O sítio PELD Pró-Mata foi estabelecido em uma área de Mata Atlântica, um dos biomas mais ameaçados do mundo, e por isso é considerado prioritário para conservação. Foi adquirida em 1993 pela Universidade e convertida em RPPN em 2019, garantindo a perpetuidade do compromisso da PUCRS com a conservação da biodiversidade, bem como a mitigação do impacto das atividades humanas.
O documentário Arno Lise – A Arte da Natureza, lançado em 2019, conta parte da extensa trajetória de um dos maiores especialistas em aranhas do Brasil. O biólogo e naturalista, com mais de 57 anos de carreira, passou todos lecionando na PUCRS, até se aposentar em 2016 – mesmo ano em que recebeu o título de Professor Emérito da Universidade. A obra foi a única brasileira selecionada como finalista do Raw Science Film Festival, na categoria de séries documentais profissionais, na edição de 2020.
Realizado pela Prana Filmes, produtora sob direção do cineasta e também professor da Escola de Comunicação, Artes e Design – Famecos, Carlos Gerbase, o média-metragem contou com a participação do Museu de Ciências e Tecnologia da PUCRS (MCT) – através de sua Associação de Amigos. O grupo de pesquisa Estúdio Transmídia – da Famecos, também colaborou com as gravações que aconteceram em parte no Tecna, em Viamão, e outras em Porto Alegre.
A produção audiovisual retrata a vida de Lise desde a infância, em Canela – na Serra Gaúcha, onde começou a colecionar as primeiras espécimes de besouros, coletadas no começo da década de 1960, até suas famosas ilustrações de aranhas minúsculas, criadas até 2018.
No documentário, é possível acompanhá-lo em plena coleta de novas espécimes, munido de ferramentas que ele mesmo inventou, e também desenhando pequenas aranhas com auxílio de uma câmera clara acoplada a um microscópio. Arno Lise identificou várias novas espécies de aracnídeos, sempre movido por sua paixão pela natureza, particularmente pelos insetos.
Arno Antônio Lise, carinhosamente apelidado de “Professor Aranha”, devido ao seu destaque na área de atuação, formou diversos(as) outros(as) profissionais. Ao comentar sobre o documentário, se surpreende. “Fiquei muito lisonjeado! É uma grande felicidade saber que esses 57 anos trabalhando na Universidade serviram para inspirar outras pessoas. Já perdi a conta de quantos alunos e alunas formei e quantos trabalhos publiquei”, conta.
Ao começar a carreira, o biólogo afirma que não esperava uma repercussão tão grande sobre seu trabalho, referência no Brasil, e, agora, internacional. “Nunca pensei nisso. Não sou vaidoso, procuro fazer meu trabalho da melhor maneira possível. É gratificante!”, comenta.
Com um estilo próprio e uma técnica refinada, Lise ficou conhecido pelos entomólogos (especialistas que estudam os aspectos dos insetos e suas relações com seres vivos e o meio-ambiente), em parte, pelos seus desenhos sobre aranhas pequenas. O trabalho artístico era uma novidade na época em que os estudos, em sua maioria, falavam sobre insetos maiores. As últimas duas décadas de sua vida foram dedicadas ao MCT, onde fica sua sala.
“O pontapé inicial foi do MCT. Eles me pediram ajuda, em 2017, pra fazer um pequeno vídeo sobre o professor Arno, que acompanharia uma exposição sobre seus desenhos de aranhas. Fiz o vídeo e conheci o personagem fantástico. Aí veio a ideia de fazer um trabalho mais longo e mais ambicioso”, recorda Gerbase.
Durante as entrevistas, o diretor percebeu que a trajetória do “Professor Aranha” poderia inspirar outros(as) cientistas, pela sua história de superação. “Não teve privilégio algum. Pelo contrário. Lutou pela sua carreira e foi bem sucedido”, declara.
Além de ser professor da Graduação e Pós-Graduação da Famecos, Carlos Gerbase é roteirista e diretor cinematográfico desde 1978, tendo realizado sete longa-metragens e dez curtas. É escritor, com quatro trabalhos de ficção (dois volumes de contos e dois romances), duas obras ensaísticas na área do cinema (tecnologias digitas e direção de atores) e uma obra didática destinada ao ensino médio (introdução à realização audiovisual).
Em sua sexta edição, o Raw Science Film Festival (RSFF) é um dos mais importantes festivais do mundo na categoria de Filmes Científicos. Neste ano, atraiu títulos de 29 países diferentes. Arno Lise – A Arte da Natureza é o único representante brasileiro.
“A missão do RSFF é humanizar a ciência e garantir que especialistas baseados em fatos fiquem na vanguarda da cultura popular, comemorando as melhores histórias científicas do mundo. Honra destaques em ciência, tecnologia e mídia e exibe os melhores filmes do mundo”, destaca o portal oficial do evento.
A edição do filme é de Alexander Desmouceaux e Fábio Lobanowsky. A edição de som e a música são de Augusto Stern, do Bunker Sound Design.
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