Datacracia, big data e um governo de algoritmos onde há uma vigilância constante sobre o povo por meio de bancos de dados. Durante sua conferência no 14º Seminário Internacional de Comunicação (Seicom), realizado de 6 a 8 de novembro, na PUCRS, o sociólogo belga Derrick de Kerckhove falou sobre o big brother, a perda da autonomia e da privacidade, destacando que informações sobre nós estão disponíveis o tempo todo sem nem sequer sabermos. “A transparência cria condições de vigilância permanente e todos deveriam ter acesso legal e absoluto aos dados sobre nós, isso deveria estar numa constituição”, alertou. Nesse sentido, também destacou a importância de a transparência ocorrer nas duas vias, tanto do povo quanto dos governos.
Ao citar McLuhan, de quem foi discípulo e tradutor oficial, Kerckhove lembrou que a vigilância universal traz um dilema entre privacidade e a tecnologia, com repercussão instantânea sobre a vida das pessoas. A maioria gera e compartilha informações digitais diariamente. Nesse sentido, a individualidade dá espaço à comunidade. “Quanto mais eles sabem sobre nós, menos nós existimos”, disse parafraseando McLuhan. “Dominamos o espaço físico, o espaço mental é trabalhado por educadores, mas do espaço digital ainda conhecemos pouco”, complementou. Na sua passagem pela PUCRS, Kerckhove concedeu uma entrevista na qual falou sobre redes sociais, datacracia e psicotecnologia, entre outros temas.
Facebook, Instagram, YouTube, WhatsApp, Twitter, blogs… todos esses canais são uma forma de psicotecnologia e mudaram a forma como nos comunicamos?
Sim, mudaram. Cada um deles tem uma configuração diferente, propósitos e características. O Twitter é imediato, com uma boa seleção de para quem a mensagem é direcionada. O Facebook é uma forma diferente de psicotecnologia, é mais elaborado, multimídia e baseado em uma construção comunitária. Ele cria a possibilidade de dividir emoções, imagens sugestões, ideias. Todas as redes sociais, chamadas de web 2.0, têm a capacidade de encorajar as emoções a circularem. A internet é um sistema límbico, responsável pelas emoções e comportamentos sociais. No momento em que as pessoas se conectam, o vínculo mais forte será emocional e não racional. É por essa razão que Trump está indo tão bem no Twitter, muitos o amam, ele é realmente um “Twitter boy”.
Quais são os próximos passos da Comunicação nesta era digital e globalizada e que, talvez McLuhan não tenha previsto?
Não há muito que ele não previu (risos). Imediatamente podemos prever o crescimento da Inteligência Artificial (I.A.) como mediadora da nossa comunicação. Primeiro para pesquisa, mas eu também consigo imaginar uma I.A. que sabe como escrever uma carta de amor para alguém com quem você quer romper, por exemplo. O que a I.A. sugere que você diga? Ela poderia formular algo sabendo muito bem quem é a outra pessoa, quem é você e qual o seu estilo?
Então no futuro nós não teremos mais que pensar?
Infelizmente é o que está acontecendo. Por isso você tem sorte de estar em uma Universidade, porque é o lugar onde você ainda é instigado a pensar por você mesmo. Mas muitas pessoas não vão mais precisar disso. As máquinas absorveram muito do nosso cognitivo, por isso chamamos de psicotecnologias, que lidam com o psicológico, que modificam a epistemologia, a forma como você aprende as coisas, como sabe das coisas, como se relaciona.
Houve uma mudança de comportamento e de valores?
Uma grande mudança de comportamento, e McLuhan explicou que as pessoas eram engolidas pela televisão. Quando você muda da TV para a internet, algo diferente ocorre. De repente, você pode responder. A internet é uma via de mão dupla, então suas responsabilidades mudam. Porque você pode responder, você se torna responsável. A internet engoliu todas as outras mídias e se tornou o seu telefone no seu bolso, no qual você passa muito tempo. Isso é definitivamente uma psicotecnologia, pois contém a sua memória. Você lembra o telefone dos seus amigos? É claro que não. Tudo que é importante para você, mas não tem tempo de ver agora, você salva para depois e, na maioria das vezes, você não vai olhar, mas se sente melhor por ter salvo. A internet mudou nossa atitude com relação à informação e a qualquer tipo de conteúdo.
As pessoas colocam suas atividades diárias nas redes sociais e se alimentam do que os outros estão fazendo. Estamos vivendo o Show de Truman?
Sim, até um certo ponto e estamos cientes disso. Fazemos selfies apenas para provar que estamos lá. Você viu Black Mirror? O episódio Queda Livre, no qual as pessoas se dão notas. Ele coloca o dedo na ferida. Isso muda totalmente nosso comportamento e nossos valores e isso é muito estúpido. Levamos séculos para definir Mona Lisa, a mais misteriosa expressão, e agora temos os emoticons. Tudo bem termos todas essas ferramentas, mas pagamos um preço por isso. Nossa finesse emocional está em jogo. Quando eu era criança, nossa identidade era cultivada pelo que líamos. Esse não é mais o caso, as pessoas não absorvem mais nada, pois têm acesso a tudo externamente, então por que se incomodar?
O que é datacracia?
Datacracia é um exagero e uma provocação. Não está realmente acontecendo, mas mostra tendências de acontecer. Muitas evidências mostram que, eventualmente, os algoritmos vão decidir tudo. Os países asiáticos estão mais interessados no comportamento coletivo que no privado. Eles preferem controlar o comportamento privado e administrar o coletivo. A Ásia está mais preparada para aceitar regras gerais, mesmo que imponham um sacrifício individual. Nós do mundo ocidental somos mais individualistas.
Seremos mais resistentes?
Muito mais resistentes, mas isso não quer dizer que resistiremos. Tentaremos por mais tempo, mas eventualmente, os algoritmos que usamos para administrar nossas vidas e a sociedade serão mais fortes que nós. Eles já são mais fortes, são como o diabo porque não sabemos que estão lá.
Então todas as nações seguirão esse rumo?
Tudo depende se conseguiremos superar o terrorismo, que é um grande incentivo para reforçar vigilância, segurança e controle. Os governos estão instalando sistemas em locais onde podem vigiar a todos. Parece que iremos na direção do sistema asiático, como em Singapura, Coreia do Norte e China. A China decidiu fazer a Queda Livre (referência ao Black Mirror) para todos os seus 1 bilhão e 300 milhões de habitantes. E porque esses países têm mais sucesso que nós, maior riqueza, modernidade e tecnologias, nós teremos inveja e vamos querer fazer também. Acho que no mundo todo estaremos cada vez mais sob vigilância e controle. A segurança será a desculpa para isso. Seremos menos autônomos enquanto nossas máquinas serão mais. Agora temos robôs que parecem humanos, que têm autonomia, que têm poder de decisão, que podem ser consertar, que podem inovar, tudo com o propósito de nos servir.
Isso é perigoso?
Terrivelmente perigoso. Eu não estou feliz com isso, mas não quero ser alarmista. Claro que muitos empregos serão tomados pelo sistema, mas o sistema também criará novos empregos. Não queremos ignorar o problema, mas não podemos exagerar dizendo que é o fim da economia. É uma das grandes mutações da economia e temos que nos adaptar. Pinóquio, A.I., Matrix, Avatar, Quero ser John Malkovich, Show de Trumman, Tron, todos esses filmes falam sobre como vencer a máquina e no que estamos nos tornando.
Realidade aumentada, memória aumentada, inteligência aumentada. Chegaremos ao dia em que não haverá fronteiras entre homem e máquina?
Já está acontecendo. Nós aumentamos tudo, sensibilidade, design, imaginação, mas é importante lembrar que tudo que aumentamos, removemos de nós mesmos, se torna externo. Isso não é totalmente ruim. Nossa memória não contém todos os detalhes que podemos encontrar nos nossos celulares. O fato é que não temos mais autonomia.
Sobre Derrick de Kerckhove
Derrick de Kerckhove foi diretor por mais de 20 anos do Programa McLuhan em Cultura e Tecnologia, na Universidade de Toronto, onde foi professor emérito no Departamento de Francês. Leciona na Faculdade de Sociologia da Universidade Federico II, em Nápoles, Itália, e é pesquisador convidado na Biblioteca do Congresso Nacional em Washington, EUA. Diretor científico da revista de cultura digital Media Duemila, com sede em Roma, é autor de diversos livros editados em mais de dez idiomas, incluindo inglês, italiano, francês, espanhol, português e brasileiro, esloveno, polonês, chinês, japonês e coreano.
14º Seminário Internacional da Comunicação
O 14º Seminário Internacional da Comunicação (Seicom) foi promovido pelo Programa de Pós-Graduação (PPGCom), da Faculdade de Comunicação Social da PUCRS. “O Seicom completou 20 anos e evidencia o caráter de internacionalização do PPGCom, com professores da Famecos que fortaleceram o evento pelas suas relações com universidades no exterior”, afirma a professora Juliana Tonin, membro da Comissão Coordenadora desta edição do Seminário, que teve cerca de 500 trabalhos apresentados e 600 participantes. Durante o evento, os organizadores promoveram uma homenagem à trajetória acadêmica professora Doris Fagundes Haussen, fundadora Programa de Pós-Graduação de Famecos, e que se aposentou em agosto de 2017.
Inédito GT de Iniciação Científica
O Seicom foi criado em 1997 como um seminário de conferências e ganhou maior impacto ao longo dos anos com a criação dos Grupos Temáticos (GTs). Em 2017, houve a estreia do GT de Iniciação Científica, no qual várias instituições se inscreveram. O novo espaço de exposição de trabalhos foi valorizado por não ser avaliativo, incentivando os debates de jovens pesquisadores. Pela primeira vez participaram alunos do Ensino Médio como bolsistas de Iniciação Científica Júnior, ligados ao programa de Pré-Graduação da PUCRS (PreGrad). As alunas Anna Ortega, do Colégio Marista Rosário, e Gabriela Oliveira, do Colégio Santa Inês, foram as primeiras a viver essa experiência, orientadas pela professora Juliana Tonin.
“O Seminário proporcionou profícuas trocas intelectuais e interessantes reflexões sobre a área da Comunicação entre alunos e professores de várias partes do país, além dos convidados da França, Itália, Canadá e Suécia, estreitando, assim, a pesquisa em conjunto entre a PUCRS e a Universidade de Montpellier III, e abrindo a possibilidade de novos acordos nacionais e internacionais”, analisa a coordenadora do PPGCom, professora Cristiane Freitas Gutfreind.