Zezé Motta, a tigresa de unhas negras e íris cor de mel, que em 1977 inspirou a canção Tigresa, de Caetano Veloso, abriu a noite de 6 de maio emocionando a plateia no teatro do prédio 40 da PUCRS, ao interpretar trechos da obra Quarto de Despejo: diário de uma favelada, da escritora mineira Carolina Maria de Jesus. “Povo não tolera fome. É preciso conhecer a fome para poder descrevê-la”, leu a atriz e cantora, com os olhos marejados. O bate-papo Zezé Motta – Uma vida de arte e resistência foi o desfecho do 12º FestiPoa Literária – Festival de Literatura promovido por um coletivo de agentes culturais, que em 2019 homenageou a filósofa e ensaísta Sueli Carneiro e teve como tema central o pensamento das mulheres e o feminismo negro.
A entrada de Zezé no palco, no qual participou de uma conversa conduzida pelo escritor Marcelino Freire, com participação da atriz gaúcha Hayline Vitória, foi precedida por uma projeção de fotos, ilustrando a evolução da carreira artística da convidada fluminense. Elas serviram para guiar os momentos narrados ao longo de 1h e 50 minutos, com base na biografia da artista Zezé Motta – Um canto de luta e resistência, de autoria de Cacau Higyno. O diálogo descontraído foi permeado por muitas músicas, algumas alegres, outras impregnadas de conteúdo de resistência a questões como o preconceito racial. “Quando canto coisas tristes, eu me ponho nesse lugar. Não tem jeito: eu choro, me entrego e às vezes faço a plateia chorar”, revela.
A carreira, para a qual descobriu o talento desde pequena, teve como grande marco inicial a peça Roda Viva, escrita por Chico Buarque de Holanda, em 1967, e dirigida por José Celso Martinez. À época, durante o período da ditadura civil-militar, “a peça foi proibida pela censura, mas fomos para as ruas, fizemos um escarcéu e ela voltou. Era um tempo difícil para se fazer arte. Os censores assistiam desde o ensaio geral e, se achassem que algo deveria ser cortado, era cortado”, relata a atriz.
No Rio Grande do Sul, fez uma única apresentação com essa peça, em Porto Alegre. Na noite em que ocorreria a segunda exibição, o antigo Teatro Leopoldina, na Avenida Independência, estava lacrado. No hotel, o elenco foi barrado. Os colegas gaúchos de palco Paulo César Peréio e Elizabeth Gasper, conta Zezé, foram sequestrados por militantes de direita e humilhados. “No dia seguinte, houve a proibição em todo o Brasil”, relembra.
Nos anos 1970, a atuação no filme Xica da Silva e o princípio da vida de cantora transformaram sua vida. Foi também o período em que passou a engajar-se fortemente na questão da identidade racial e de gênero. “Após conhecer o mundo divulgando Chica, Lélia Gonzalez, minha grande mentora, perguntava como era conquistar em espaço suado como mulher, negra, brasileira. Descobri ali a grande responsabilidade que tenho”, conta. Após participar de um curso com Lélia, Zezé participou do Movimento Negro e, junto com amigos, criou o Centro de Informação e Documentação do Artista Negro.
A decisão de cantar veio do desejo por novidades e do incentivo de seu pai, que percebeu esse talento na filha desde a infância. “Não tinha repertório, nem empresário, nem músicos ou gravadoras. Simplesmente decidi cantar”, conta Zezé, com um largo sorriso no rosto. À sua volta, naquele tempo, estavam nada menos que Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento e Luiz Melodia, entre outros, a quem admirava e gostava de interpretar. Em meio aos relatos, recordando Melodia, cantou Dores de Amores: “Eu fico com essa dor/ Ou essa dor tem que morrer/ A dor que nos ensina / E a vontade de não ter /Sofrer de mais que tudo / Nós precisamos aprender / Eu grito e me solto /Eu preciso aprender”.
Ao ser questionada pela atriz Hayline Vitória sobre como lida com questões de preconceito e como percebe o espaço ainda pequeno para os negros na teledramaturgia, Zezé diz que recebe muitos e-mails a respeito e, em todos, recomenda que a pessoa tenha “perseverança, pois quem não persegue seu sonho não consegue ser feliz”, orienta. Também destaca que as questões sobre desigualdade e discriminação racial não podem ser preocupação somente dos negros, mas de todas as pessoas preocupadas com a justiça. “Somos todos iguais, somos todos irmãos. Ninguém tem sangue azul. Fico emocionada quando vejo que não tem mais esse discurso de eles os brancos e nós os negros. Estamos juntos lutando por uma causa nobre”, declara.
Ao final, para quem esperava apenas por um bate-papo, foi presenteado com bom humor, conscientização, simplicidade, resistência, memórias doloridas e uma grande mensagem de esperança e empatia com o público, seja na música, na literatura ou em outras expressões da arte. “Sou rainha, fui escrava, mulher, cantora e atrevida. Tenho 75 anos, sempre fui namoradeira e continuo”. A declaração foi seguida de muitas risadas, e Zezé recebeu uma longa salva de palmas, com a plateia em pé. O evento na Universidade foi resultado da parceria do Instituto de Cultura da PUCRS, que atuou como apoiador cultural do FestiPoa Literária.