Em tempos em que precisamos estar recolhidos, sugerimos um passeio pela música de concerto, passando por vários países e tendências. Músicas que nos transportam para um estado de contemplação, dirigindo nossa atenção aos detalhes e incitando reflexões subjetivas. Coloque seus fones, ou então ligue o som num volume em que você possa ouvir todos os detalhes, mesmo os mais sutis, e inicie agora um passeio cheio de descobertas e boas sensações:
Começamos com a suíte Os Planetas (1914-16), de Gustav Holst. Dentre todos os planetas, sugerimos iniciar com Júpiter, cheio de energia e com uma melodia simples e marcante logo nos primeiros minutos. Para quem tiver curiosidade, é uma peça excelente para ouvir e viajar pelo sistema solar sem sair de casa. Holst tem uma sonoridade que depois veio a ser muito utilizada em trilhas sonoras de filmes, então você poderá identificar como algo familiar, mesmo sem ter ouvido antes, pois compositores como John Williams e James Horner levaram uma sonoridade semelhante ao cinema na segunda metade do século XX. Vale a pena uma leitura na internet sobre este conjunto cheio de curiosidades.
A próxima parada é na obra Quadros de Uma Exposição (1874), de Modest Mussorgski. Originalmente escrita para piano, recebeu esta roupagem orquestral em 1922, por ninguém menos que Maurice Ravel, entrando e permanecendo no repertório das orquestras do mundo todo. A peça é, digamos, uma homenagem ao pintor Viktor Hartmann, com 10 quadros sonorizados deste artista, entremeados com um tema “Promenade”, ou um “Passeio”, levando o ouvinte literalmente a uma viagem pela exposição. A orquestração de Ravel é exuberante! Um bom exercício é ouvir primeiro a versão original para piano, e depois a versão orquestrada, comparando a cada movimento e apreciando as escolhas de Ravel. Excelente exercício de percepção.
O Concerto para Violino (1939), de Samuel Barber é de uma sonoridade tocante, sutil e intensa ao mesmo tempo. Barber esticou um pouco do romantismo do século XIX até o final do século XX, mesmo em meio a tantos outros movimentos artísticos diferentes que aconteceram durante sua vida. Talvez este não seja um concerto tão virtuosístico quanto outros. Isso denota que não foi uma preocupação do compositor em deixá-lo difícil de executar, o que neste caso é bom, deixando assim a atenção em passar a ideia musical sem desvios. Contudo, a rapidez do terceiro movimento parece ter sido uma maneira de compensar a falta de velocidade dos dois primeiros movimentos. Além do violino solo, observamos no segundo movimento um belíssimo e envolvente solo de oboé. Aliás, todos os temas desta peça são muito envolventes.
Seguimos o passeio pela Rapsódia sobre um tema de Paganini (1934), de Sergei Rachmaninoff. A obra completa é composta de 24 variações para piano e orquestra, mas aqui convidamos para uma escuta inicial da 18ª variação, a mais famosa. Trata-se do Andante Cantabile, em Ré bemol maior. Neste momento o piano assume completamente a posição de protagonista, transformando em sons um dos temas mais tocantes de toda história da música ocidental. Porém, o impacto desta 18ª variação deverá ser absorvido pelo ouvinte com toda sua intensidade somente se ouvirmos toda a peça desde a 1ª variação. Vale cada minuto e cada nota.
Voltando alguns séculos, não poderíamos deixar de revisitar Johann Sebastian Bach. Em nosso passeio consta o Concerto de Brandenburgo nº 5 (1721). A fluência das composições de Bach está aqui, o sistema de baixo contínuo e a velocidade das melodias funcionam como um imã para prender nossa atenção, parece nos hipnotizar. Neste concerto há que se notar a parte do cravo, instrumento de teclas pinçadas muito comum no período barroco. Temos a impressão de que ele literalmente ‘enlouquece’ e assume o protagonismo enquanto a orquestra o espera para retomarem juntos o primeiro tema.
Passando pela França, podemos sentir uma sonoridade diferente. Por vezes você pode pensar que está em um sonho. Três Danças para Orquestra (1932) é uma das poucas músicas para orquestra de Maurice Duruflé. Os franceses desenvolveram uma escola fantástica de orquestração principalmente no início do século XX (entenda-se aqui orquestração como a arte de distribuir a música entre os instrumentos da orquestra). Há pouco vimos isso com Ravel, em sua magnífica orquestração para Quadros de Uma Exposição. Efeitos complementares e estruturais, colocados intrinsecamente ao discurso musical procurando utilizar todos os instrumentos com igual importância: cordas, madeiras, metais e percussão.
Chegamos ao Brasil, com as Bachianas Brasileiras nº 4 (1930-41), de Heitor Villa Lobos. Inicialmente composta para piano, em 1942 ganhou uma super orquestração do próprio compositor. Como o título diz, a inspiração vem do alemão Bach, mais especificamente dos Concertos de Brandenburgo, mas também podemos considerar que Villa Lobos teve influência francesa em suas composições, pelo período que lá conviveu. São nove bachianas ao todo, desta vez com elementos brasileiros bem identificáveis, por isso recomendamos a audição completa da obra. Aqui ficamos com a Bachiana nº 4, que tem um início arrebatador com as cordas, e divide-se em quatro movimentos: Prelúdio/Introdução, Coral/Canto do Sertão, Ária/Cantiga e Dança/Miudinho. Após passarmos por Holst, Mussorgsky/Ravel, Rachmaninoff, Duruflé e Bach, é muito interessante ouvir elementos bem brasileiros se relacionando com elementos do mundo dentro da música de concerto.
Rodeo (1942), de Aaron Copland, foi composta originalmente para um ballet, tendo recebido logo uma versão para salas de concerto. A versão de concerto é divida em 4 momentos: Buckaroo Holyday, Corral Nocturne, Saturday Night Walz e Hoe-Down, os quais recomendamos ouvir na íntegra para uma boa apreciação. Porém com Hoe-Down, notamos fortemente a intenção de mostrar elementos nacionais, neste caso dos EUA, de forma muito divertida e de fácil assimilação. Aliás, na primeira metade do século XX, vários compositores ao redor do mundo sentiram esta necessidade de expressar elementos nacionais vindos do folclore e tradição popular, onde se enquadram Villa Lobos, Gershwin e Piazzola, por exemplo.
Nesta mesma linha de músicas mais leves, que tratam de elementos locais, vem Danzón nº2 (1994), de Arturo Márquez. Possui um título que por si só sugere ritmo, no caso ritmos mexicanos. A peça recentemente composta já rodou o mundo e faz parte do repertório de praticamente todas as orquestras. Muito divertida, com ritmo intenso, é uma excelente música para encerrar um concerto em alto astral e colocar o público a dançar, mesmo que sentado.
Chegando ao fim deste passeio, não poderíamos deixar de fora o aniversariante do ano, Ludwig van Beethoven. Ele estaria completando 250 anos em 2020, e pela qualidade e perpetuação de sua obra, merece as repetidas homenagens que está recebendo. A 9ª Sinfonia (1824) é um ponto alto na história da música de concerto, tendo sido a primeira sinfonia a levar um coral para o palco, o que impactou sobremaneira o público do início século XIX. Com o poema de Friedrich Schiller “An die Freude”, ou “Ode à Alegria”, Beethoven, já acometido por surdez, mostra um trabalho exuberante que há 250 anos vem lotando auditórios em busca da experiência transformadora que é ouvir a sua 9ª Sinfonia. O coral e os solistas entram somente a partir do quarto movimento, que se constitui num verdadeiro gran finale. Bem definem historiadores como sendo sua fase ‘transcendente’. Ouvir esta sinfonia completa ao menos uma vez na vida em bom volume, se possível ao vivo, é uma experiência realmente transformadora.
Este foi um pequeno passeio num mundo de composições excepcionais. Você conseguiu observar algo interessante durante a audição destas músicas? Você pensou sobre o mérito de cada um destes compositores em transformar notas escritas num papel nestas maravilhas sonoras? A música tem uma força incrível, que pode ser observada e sentida por ouvintes atentos e curiosos. Se algo neste percurso todo lhe fez se sentir bem, ou aprender algo, a realização será toda nossa. Muito obrigado por nos acompanhar neste passeio musical! Até breve!
Márcio Buzzato completou dois bacharelados em música pela UFRGS, um na área de Regência e outro em Composição Musical, ambos obtidos com Láurea Acadêmica. Foi professor de Regência e Canto Coral na UFRGS e na UFSM e, durante suas graduações, foi monitor de Contraponto Modal, Contraponto Tonal, Fuga, Teoria Musical, Regência e Canto Coral. Desde 2010, está à frente do Coral da PUCRS. Clique aqui para saber mais.