No dia 24 de fevereiro de 2021, o presidente russo Vladimir Putin autorizou a invasão de tropas russas no território da Ucrânia. Desde então, milhares de russos e ucranianos foram impactados pelo conflito. O número de mortes dessa guerra ainda é incerto, e pode variar de acordo com a fonte. Conforme a Organização da Nações Unidas (ONU), este dado está na faixa dos 7 mil. Porém, segundo jornais europeus, o número de vidas perdidas pode chegar a 300 mil. Além do conflito armado, a guerra também contribuiu para a geração desenfreada de fake news sobre os motivos e as consequências do combate.
Uma guerra entre duas grandes potências, como Rússia e Ucrânia, possui diversos antecedentes. Alguns deles, oriundos da construção dos dois países. Para entender melhor esse cenário, conversamos com especialistas da PUCRS sobre esse primeiro ano.
Olhar para o passado é fundamental para compreender o conflito de hoje. O professor do curso de História e Relações Internacionais da Escola de Humanidades Marçal de Menezes Paredes explica que um conflito desse porte tem diversas camadas de explicação. ”Do ponto de vista mais histórico, remete à herança do império russo a própria compreensão dos ucranianos e mesmo ao processo forte de russificação cultural e linguística operada desde o contexto estalinista na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS)”.
O professor do curso de Relações Internacionais da PUCRS João Jung explica que Rússia e Ucrânia compartilham origens semelhantes que remetem ao século X, na “Rússia de Kiev”. Ele pontua que, na época, os eslavos se dispersaram pela Europa atraídos pela influência do Império Bizantino e, hoje, se encontram espalhados entre países como Ucrânia, Bielorrússia, Rússia, entre outros.
Além da relação histórica do conflito, há também questões geopolíticas contemporâneas que acabaram influenciando a guerra. Marçal Paredes explica que o problema já começa na dissolução do comunismo, pois tanto a Europa como os Estados Unidos não souberam administrar a herança da antiga União Soviética.
“Houve hipocrisias e erros de cálculo em várias dimensões, das quais destaco apenas algumas: a tentativa de incorporar a oligarquia russa no cenário econômico ocidental, tentando, com isso, gerir politicamente (e à distância) a autocracia de Putin (seja através da lavagem de dinheiro, seja nos projetos de infraestrutura). Houve também traição (por parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e dos Estados Unidos da América (EUA) da promessa de não-expansão em direção aos países surgidos do final da União Soviética – tendo havido, também, por parte da Rússia, a traição na promessa de desenvolver no regime pós-soviético de Moscow (e que está ligada ao fato da Ucrânia ter abdicado do seu arsenal atômico no final dos anos 1990)”.
Marçal ainda ressalta que, ao olharmos a história recente, principalmente da Rússia, fica ainda mais claro quais motivações levaram ao conflito. Enquanto Putin declarava expansão da OTAN em 2008, em Bucaraste, na Romênia, e a tomada da Criméia (território Ucraniano), em 2014, o Ocidente seguiu de olhos fechados para a ambição de Putin.
“Não houve resposta militar consistente, mantiveram-se acordos de gasodutos e até a Copa do Mundo da Rússia, em 2018. Todas essas estratégias falharam. Todas essas camadas de significado histórico-político desmoronaram e quem está pagando o preço (com vidas humanas) é a população ucraniana”, enfatiza o professor de História e Relações Internacionais.
Leia também: Rússia e Ucrânia: pesquisadores da PUCRS analisam o conflito
Esse ano de conflito gerou perdas inimagináveis para as famílias russas, ucranianas e para pessoas de outros países que também se envolveram na guerra. Mesmo que ainda em curso, é possível estabelecer que, tanto Rússia como Ucrânia, foram drasticamente afetadas durante esse período. Para o professor de Relações Internacionais João Jung as duas potências saem enfraquecidas de alguma forma, ainda que em graus diferentes.
“A Ucrânia sai enfraquecida no ponto de vista econômico, pois sofreu muitas perdas estruturais e financeiras. Em contrapartida, ganha um relevante capital político, pois recebe uma atenção do Ocidente que não seria dada de outra forma. A escolha do presidente ucraniano Zelensky para Pessoa do Ano na revista TIMES em 2022 e a visita do presidente dos Estados Unidos Joe Biden ao território ucraniano, reforça a preferência do Ocidente pelo país”, destaca.
Já em relação ao país russo, João acredita que ele sai duplamente enfraquecido. “Politicamente, vemos a Rússia rachada com o Ocidente, o que é problemático tendo em vista que o país compartilha espaço em uma série de fóruns multilaterais, sendo o Conselho de Segurança da ONU o caso mais emblemático. Economicamente, a Rússia passa por uma crise principalmente em relação ao estrangulamento das relações com a União Europeia, vital à economia russa. O boicote econômico Ocidental cortou importantes divisas do país, fenômeno que não se agravou apenas graças à China, que aproveitou esta lacuna e passou a se aproximar economicamente da Rússia, embora, politicamente, o país asiático se mantenha neutro em relação ao conflito”.
A guerra também gerou uma crise imigratória. Ucranianos e russos, em menor quantidade, precisaram deixar suas casas devido ao conflito armado iniciado no ano passado. Para Marçal Paredes, ser refugiado de guerra é deixar praticamente tudo para trás.
“O refugiado é vítima de uma violência indescritível do ponto de vista humano e existencial. Afetos, memórias, relações sociais, tudo é abandonado. Não se refaz a vida noutra cultura, nem de maneira fácil, nem de forma rápida. É uma adaptação que pode durar gerações.”
O conflito ainda persiste apesar das tentativas de paz. Recentemente, o Brasil deixou claro seu posicionamento em relação aos conflitos na Assembleia da ONU. Para o professor da Escola de Humanidades Augusto Neftali a posição brasileira condiz com a política externa já adotada pelo país e com a preservação dos interesses do Brasil no mundo atual.
“O Brasil é um país relativamente distante do conflito, sobre o qual tem pouca capacidade de ingerência. O movimento recentemente realizado em âmbito presidencial, no sentido de incentivar negociações para a paz, não encontrou um momento adequado para prosperar. Cabe ao Brasil observar os desdobramentos da guerra e seus reflexos diplomáticos e comerciais, preservando sua autonomia estratégica e, guiado pelos princípios constitucionais das relações internacionais, defendendo os interesses nacionais brasileiros.”
No entanto, é inegável que a resolução dessa guerra irá trazer uma mudança quando se fala de geopolítica e relações internacionais. Para Marçal Paredes, nesse primeiro ano de conflito, quem realmente ganhou foi a indústria bélica. No entanto, o professor pondera que a Guerra na Ucrânia mudou totalmente a União Europeia.
“O encerramento da guerra irá pautar o novo sistema internacional que irá vigorar nas próximas décadas do século XXI. Por isso esta guerra é tão importante. Além de tratar do futuro da Ucrânia e mesmo do regime de Putin, na Rússia, um suposto final da guerra terá repercussões quanto às ambições da China sobre Taiwan e mesmo no próprio sistema de alianças internacional do Pacífico Sul (que engloba os interesses dos EUA, mas também se articula ao papel da Austrália, do Japão, da questão das Coreias, etc.).”
O professor de Relações Internacionais, João Jung, avalia que mesmo que haja uma dissolução do conflito, isso não significa que as coisas irão voltar ao normal. “Aquela sempre será uma zona delicada. Digo aos meus alunos que existem regiões no mundo que são como um “caldeirão”, nas quais, historicamente, há uma série de variáveis permanentes que incitam a eclosão de um conflito de tempos em tempos; o Leste europeu, e em especial a Ucrânia, se encaixa aqui. Outros casos, para exemplificar, seriam o que concerne às relações China-Taiwan, às duas Coreias e à Transcaucásia. Agora, esses conflitos iminentes podem ser atenuados ou amplificados. No que tange às relações Rússia-Ucrânia, tudo vai depender daquilo que for acordado no fim do atual conflito, o que alguma hora irá chegar”, classifica João.