Nas últimas semanas o mundo tem acompanhado as incertezas e o temor em relação ao retorno do Talibã ao poder no Afeganistão. Entender a origem e os impactos desse conflito exige uma abordagem interdisciplinar. Nesse sentido, pesquisadores da Universidade contribuem com o debate sobre o tema em diferentes áreas de estudo, refletindo sobre os processos culturais, diplomáticos e migratórios ocasionados pelo movimento.
Orientado por uma leitura radical da lei islâmica (Sharia), o grupo fundamentalista Talibã surgiu no norte do Afeganistão no início da década de 1990, após a retirada das tropas soviéticas. Em 1995, após assumir o poder, o grupo deu início a um governo marcado pelo uso de formas violentas de coerção e pela drástica restrição de liberdades individuais. A queda dos talibãs ocorreu em 2001, com a invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos, após o atentado às Torres Gêmeas.
Coordenadora do curso de Relações Internacionais, a professora Teresa Cristina Marques explica que o retorno dos talibãs ao poder significa o fracasso da ocupação e da retirada das tropas norte-americanas, acusadas de não terem dialogado com os grupos locais.
“Já para a população afegã, o retorno do Talibã significa medo e aumento da violência política e social, sobretudo para mulheres, jornalistas, intelectuais e a população que contribuiu de alguma forma com as forças de ocupação”, comenta.
Em relação à diplomacia mundial, Teresa explica que embora os países tenham, em princípio, autonomia no processo de tomada de decisão no reconhecimento ou não do governo talibã, pode haver custos ou ganhos políticos implicados. Isto é, o reconhecimento de um regime específico pode incentivar um novo olhar da comunidade internacional a um determinado ator político, diminuindo ou aumentando o seu poder de influência e a sua inserção internacional.
Isso pode ocorrer devido ao fato de que o reconhecimento de um novo regime ou governo pode ser entendido enquanto alinhamento com determinados valores ou princípios políticos. “Como vivemos em uma sociedade internacional marcada pela valorização da democracia e dos direitos humanos – sobretudo após a terceira onda de democratizações – é inevitável que o reconhecimento de regimes autoritários que violam direitos humanos, implique em maior custo político, além de ter graves consequências humanitárias ao legitimar a violência política”, comenta.
Teresa Marques argumenta que é fundamental que a população afegã receba auxílio dos países estrangeiros. A professora cita a Anistia Internacional, que defende que a ajuda internacional é indispensável para garantir a segurança do grande número de afegãos ameaçados pelo regime. “Tal ajuda não deve poupar esforços na garantia de concessão de vistos, realocações e reassentamento da população afegã refugiada, bem como no envio de suportes para as evacuações a partir do aeroporto de Cabul e suspensão das deportações ao país”.
As mulheres são uma parcela da população que é diretamente impactada pela violência do regime talibã. Entre 1996 e 2001, elas vivenciaram o impedimento de frequentar a escola, a obrigação de cobrir o corpo entre várias outras restrições graves às suas liberdades individuais. Diante do grave risco às suas vidas e dignidades, elas se tornaram uma prioridade para os organismos internacionais e foco da atenção da sociedade internacional.
A Organização das Nações Unidas (ONU), que permanece no país, já expressou a esperança de que um acordo pacífico com os talibãs permita a promoção dos direitos das mulheres e meninas afegãs. “Evidentemente, o cenário é complexo e já há registro de perseguição às mulheres, demonstrando que o alcance da comunidade internacional no país é limitado no presente momento”, comenta a professora Teresa.
Além disso, os relatos da interrupção do acesso ao sistema de ensino e de perseguição de intelectuais no país, demonstram que a situação das mulheres no país já é muito grave. Estudos apontam que elas e as crianças são uma parte considerável dos fluxos de refugiados que já se formam.
Segundo o professor e pesquisador da Escola de Comunicação, Artes e Design – Famecos Jacques Wainberg o conflito é também cultural. “Cultura implica em moralidade e normas sociais. O Talibã está baseado na Sharia, interpretação que retira do texto religioso regras para a vida do cotidiano, ou seja, um estado teocrático. Buscam resgatar um estilo de vida que imaginam que tenha existido durante a vida de Maomé, uma tentativa de transformar em realidade uma utopia islâmica”, explica.
O professor destaca que diversos grupos rebeldes adotam uma visão contrária aos valores da sociedade liberal, típica do Ocidente, tais como Al-Qaeda, Estado Islâmico, Irmandade Muçulmana e o próprio Talibã. Este último formado por estudantes das escolas islâmicas, desejosos em fundar um estado islâmico e expulsar as forças estrangeiras. “Na origem, eram os russos e depois os americanos e seus aliados”, comenta Wainberg.
O Ocidente também viveu conflitos de natureza cultural, destaca Jacques, como a guerra entre católicos e protestantes que matou mais de oito milhões de pessoas. “No entanto, o Ocidente adotou uma postura de modernização e separou o estado da religião e criou uma filosofia cuja o fundamento é a tolerância recíproca. Essa doutrina é o que se espera que ocorra, mas é o que não temos visto nas atitudes do Talibã”.
Para Wainberg, o conflito no Afeganistão hoje reatualiza um debate internacional sobre o choque de civilizações – teoria de Samuel Huntington que discute que as identidades culturais e religiosas dos povos serão as principais fontes de conflito no mundo pós-Guerra Fria. “Com muitos pontos de vista divergentes, o conflito atual no Afeganistão contribui para a formação de uma forte corrente no Ocidente de crítica ao Islã radical. Por isso, vemos um aumento contínuo, especialmente entre grupos nacionalistas e conservadores, de oposição na imigração de refugiados muçulmanos”, explica o professor.
Para o professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em História Antonio de Ruggiero a reconquista do Afeganistão pelos talibãs se torna uma grande questão na região da Ásia Central, e ao mesmo tempo cria um problema migratório potencialmente enorme. Em particular, a Europa neste momento lida com uma com grande dificuldade, considerando a concomitância nos últimos tempos de várias crises como a da Tunísia e da Líbia, além da guerra civil na Síria, todos eventos que geraram grandes fluxos migratórios difíceis de controlar e gerenciar.
Mesmo antes da atual crise, nos últimos cinco anos cerca de 400 mil afegãos chegaram à Europa pedindo o reconhecimento de tutelas e formas de proteção, já que, apesar da derrota em 2001, os fundamentalistas continuavam presentes no território. “Mais ou menos a metade destes pedidos foi rejeitada em primeiro grau. Hoje, porém, frente à nova crise que colocou os talibãs no governo, acho muito improvável que a Europa não reconsidere a sua decisão assistindo à presença de um governo extremista islâmico fortemente repressor no Afeganistão”, opina.
Para de Ruggiero, hoje o Talibã aparece mais aberto ao mundo e à utilização das novas tecnologias e das novas comunicações. Se na década de 90 eles vetaram qualquer utilização de imagens femininas ou do corpo humano em geral, hoje parecem mais dispostos a dialogar com jornalistas mulheres, ou a utilizar os novos meios digitais, a trocar vídeos e imagens no celular.
“Apesar de um discurso estratégico mais moderado, me parece, porém, claro que a segurança dos opositores e das minorias está sob grandes riscos. Além das imagens assustadoras de fuga dos últimos dias, o que mais me induz a ser pessimista é justamente a alma fortemente fundamentalista deste movimento que predica governos teocráticos, apesar dos retoques de circunstâncias”, finaliza.