Estamos nos preparando para o enfrentamento de um dos maiores desafios do período atual: a reconstrução das relações sociais e das novas condições de vida pós este período de isolamento social. Tendo como imposição o afastamento social como estratégia para contenção do coronavírus, muitas são as perdas além das vidas ceifadas pelo inimigo invisível. Como se estivéssemos nos preparando para sairmos da caverna onde procuramos abrigo, precisamos enxergar esperanças de dias melhores que possam nos conferir significados de uma nova vida e de nova ordem social.
Sem dúvida, o distanciamento social produziu um paradoxo, pois, para nos cuidarmos e cuidarmos do outro, precisamos nos distanciar das pessoas. A orientação é de um distanciamento físico, porém temos observado que isto tem trazido outras consequências. Somos seres de “contato”, desde o mais intenso, o físico, com beijos e abraços até os toques mais sutis nas mãos ou no rosto das pessoas que gostamos ou mesmo “tocamos” com o olhar, com a palavra, com a escuta. As relações, sim estão sendo impactadas, em algumas, a proximidade do confinamento tem produzido maior intimidade, em outras, maior distanciamento, maior dor, conflito e solidão.
O que nos traz segurança e cuidado individual e coletivo, também traz algumas perdas e como toda mudança gerada por uma crise, perdemos e ganhamos. Neste caso, perdemos a rotina conhecida, a sensação de controle sobre nós e sobre os eventos que estavam por vir, um controle ilusório, e essa pandemia se apressou a nos mostrar. Ter a rotina pessoal radicalmente alterada é muito ameaçador, pois esta é um importante organizador de nossa vida. Respondemos a esta perda vivenciando um processo de luto. Neste caso o luto relativo ao mundo presumido, ou seja, o mundo interno, constituído pelo sujeito, como verdadeiro, acerca do que ele conhece, sabe ou pensa de seu passado, presente e futuro e que é significativamente impactado em uma crise, especialmente com as dimensões da que estamos vivendo, Parkes(2009), Luna e Moré(2019). O trabalho, faculdade, escola, compromissos, lazer, encontrar os amigos, abraçar os pais, tudo ficou em suspenso, mobilizando inúmeras reações: incredulidade, medo, raiva, tristeza e frustração. Estas reações são naturais no luto, perdemos coisas que são muito importantes para nós e reagimos emocionalmente a estas perdas.
Além disso, o vírus visto como inimigo invisível não está tão invisível, ele se hospeda no nosso semelhante e é isto que nos assusta e nos causa pânico e medo. O inimigo passa ser o outro e este passa a ser a ameaça personificada. Alguns comportamentos estão sendo observados como: pessoas sendo insultadas nas ruas, profissionais da saúde ameaçados, por serem potencialmente agentes de transmissão da doença. Cabe a reflexão, por que, e a quem estamos atacando? Se isto ocorre no espaço público, podemos imaginar o que acontece no privado. Perdemos o que de mais sagrado defendemos e necessitamos: o nosso reconhecimento no outro porque este passou a ser uma ameaça a nossa própria vida. Isto precisa ser encarado de frente e não deixa de ser o risco de morte social dos afetos, dos contatos, das proximidades, das gentilezas e de tantos outros sentimentos.
O respeito às pessoas deve vir em forma de cuidado com o outro, para que não sejamos veículos de contágio do vírus e de indiferença e intolerância. A expressão “estamos todos em uma tempestade e os estragos serão diferentes dependendo de que condições temos para nos abrigar” exemplifica bem esta questão. Talvez aí resida uma das maiores representações deste luto que precisa ser vivenciado e ressignificado de forma ampla, nos níveis cognitivo, interpessoal e social para que nos permita sair desta pandemia aprendendo e efetivamente nos transformando como seres humanos.
Reconhecer e identificar por que estamos mais ansiosos, irritados, intolerantes, introspectivos, (in) sensíveis, isolados, com medo e em outros momentos mais produtivos, focados em aprender algo novo, motivados para organizar as atividades acadêmicas ou de trabalho, desejando sair e ver pessoas, mais alegres e confiantes, é uma parte importante do processo de auto-observação e de autoconhecimento que as crises também proporcionam. Estas oscilações são esperadas dentro deste contínuo e precisam ser expressas e compreendidas. O Processo Dual do Luto, proposto por Stroebe & Schut (1999, 2001) indica que esta oscilação, tanto de sentimentos quanto comportamentos é necessária para que o processo de luto avance e a perda possa ser integrada a nossa vida e essa possa avançar.
Ficar triste, assustado e desanimado em alguns momentos e em outros esperançoso e confiante é esperado e desejável, como um pêndulo que se move entre dois polos, um voltado para a perda (dor, tristeza, sofrimento) e outro voltado para a restauração (transformar a dor em ação, descobrir novos interesses e criar, por exemplo). Dar sentido a perda é necessário e permite aprender com a mesma, passando o enlutado de vítima a sobrevivente, como traz Worden (2013).
O “ficar em casa” tem também colocado luz sobre um potente sentimento, a solidão. É necessário diferenciar entre estar só e estar solitário. Estar só significa estar desacompanhado de outras pessoas é a realidade de muitas pessoas atualmente. Estar sofrendo de solidão abarca estar triste, desamparado, afastado de relações íntimas, significativas e próximas que possam ser suporte nos diferentes momentos da vida, assim como, a pessoa não se perceber como uma boa companhia para si mesmo, mesmo na companhia de outros. A solidão tem várias faces, uma delas nos mostra a dor produzida pelo contato mais íntimo consigo mesmo e com algumas das questões pessoais que são difíceis de lidar e no cotidiano não são olhadas, pois temos outras demandas, geralmente externas como do trabalho, estudos, outros. Estar confinado “consigo mesmo” pode ser uma dolorosa experiência, mas que também pode ser transformadora, com o apoio e suporte adequados. Desencadeando a experiência do autoconhecimento, do mergulho em nós mesmos na busca de reconstrução de sentidos e significados de vida.
E as perdas por morte? As despedidas e o suporte dispensado por familiares e amigos no final de vida, que permite a esses seguir o processo natural de luto, não são permitidos, pois os rituais de despedidas também se tornaram de risco. Enxergamos e testemunhamos quase que a barbárie humana em que pessoas são enterradas em covas comuns e nesta hora derradeira, são privadas de uma despedida digna, literalmente despidas de sua identidade individualizada. Sofrem os que morrem, sofrem os que sobrevivem, sofremos todos que assistimos, mesmo que não tenhamos perdido ninguém próximo. Todos somos impactados, todos fazemos parte dos afetados pelos eventos desencadeados pelo COVID-19. Falar sobre isto é importante, assim como é fundamental identificar o que isso nos produz e como vamos processar e seguir a diante.
As determinações vividas de forma intensa nestes últimos meses terão sérios impactos nas nossas vidas daqui para frente. Nesta difícil tarefa de elaborar perdas, que saibamos ressignificar as nossas vidas e as vidas de todos que fazem parte de nossas redes de relações. Não podemos assistir como mero espectadores porque somos sujeitos desta construção histórica e os principais envolvidos. Como podemos nos posicionar frente a tudo isso de desenvolver nossa resiliência? Como elaborar o luto de tudo o que perdemos neste período? Com tudo isto, estamos construindo a experiência de viver em uma sociedade enlutada com muitos sentimentos de perdas a serem elaborados: perdas de vidas humanas, perda da liberdade de ir e vir, perda do direito de sermos, perda do direito de nos manifestarmos, perda do direito ao lazer, perda de direitos essenciais como trabalho, saúde, educação, entre tantos outros. Perda do conhecido e do que julgávamos ter sob controle e medo do desconhecido e da morte. O desafio é vivenciar esse processo de luto como uma oportunidade de mudança, que pode ser difícil em muitos momentos, mas transformadora em sua essência.
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