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Semicondutores: saiba como o Brasil se movimenta para entrar na disputa global 

Estratégicos, os insumos para a economia global têm sua competitividade concentrada na Ásia. Conheça os esforços do governo e universidades para entrar nesse mercado 

quarta-feira, 19 de fevereiro | 2025

A incerteza pairava sobre os corredores da Ceitec durante o ano de 2021. Fundada como Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada, em 2008, a estatal instalada na zona leste de Porto Alegre acabou listada no Programa Nacional de Desestatização (PND) – e estava prestes a ser descontinuada. Júlio Leão era porta-voz da associação dos colaboradores. Foi o primeiro a ser demitido, em abril. Três meses depois, os cortes em massa chegaram. Dezenas de profissionais estavam na rua e sem perspectivas de trabalho na região. 

Parte da equipe da Ceitec se alocou em empresas de outros estados ou remotamente em companhias estrangeiras. Mas Leão tinha outro plano. Com vasta experiência no setor, trabalhou nos Estados Unidos e fez o doutorado no IMEC (Centro Interuniversitário de Microeletrônica), o principal instituto de pesquisa de semicondutores do mundo, localizado na Bélgica. Queria usar seu conhecimento para convencer companhias estrangeiras a se instalarem em Porto Alegre. Com a ajuda de dois colegas e de executivos de recrutamento, enviou uma apresentação para 60 empresas ao redor do mundo. O documento incluía as credenciais de uma equipe de 30 pessoas e os custos da implementação de um escritório por aqui.  

Os primeiros retornos não foram acolhedores. Um dos CEOs respondeu com um seco “too far, too exotic” (“muito longe, muito exótico”). Mas, em seguida, aquele mesmo CEO visitou os perfis da equipe de Leão no LinkedIn. Seria o jogo virando? Talvez valesse a pena um lugar “tão longe e exótico” para contratar gente altamente qualificada.  

Bem, não tinha se passado nem um mês daquele primeiro contato quando o CEO da EnSilica, uma multinacional inglesa de semicondutores, fez uma oferta para 12 profissionais. Passados mais 45 dias, a Impinj, multinacional sediada em Seattle (EUA), propôs a contratação de todos os 30 profissionais. Como 12 haviam acertado com a EnSilica, a Impinj ficou com o restante. 

Enquanto perdia a estatal do setor, o Rio Grande do Sul ganhava duas multinacionais. Tanto a EnSilica como a Impinj se instalaram no Parque Científico e Tecnológico da PUCRS (Tecnopuc) naquele mesmo ano de 2021. “Se tivéssemos 1 mil pessoas, ao invés de 30, acredito que estariam aqui em Porto Alegre umas 15 empresas”, diz Leão.  

O caso mostra o potencial do mercado de semicondutores, considerados insumos industriais estratégicos para a economia mundial deste século 21. No livro A Guerra dos Chips, o especialista em história econômica Chris Miller argumenta que os chips – produto final da cadeia de semicondutores – são o novo petróleo, um recurso escasso do qual o mundo moderno depende cada vez mais. Os chips estão em praticamente todos os produtos eletrônicos – dos mais banais aos mais avançados, de tags de pedágio a carros elétricos. A pandemia, a transformação digital e os desafios sensíveis para o futuro da humanidade, como a descarbonização e a transição energética, aumentaram a demanda pelo produto. A receita global do mercado de semicondutores foi de US$ 533 bilhões em 2023, segundo a consultoria Gartner. A expectativa é que pule para US$ 1,5 trilhão até o final da década.  

Com tanto dinheiro e tantos interesses envolvidos, os semicondutores viraram motivo de disputa geopolítica entre os Estados Unidos e a China – daí o título do livro de Miller, que alerta para um possível conflito bélico causado pelo tema. A questão é que cerca de 80% da produção mundial está concentrada no leste asiático. O barateamento da produção e planos econômicos baseados em investimentos em ciência, tecnologia e inovação – como no Japão e na Coreia do Sul – levaram as indústrias para lá. Só Taiwan, onde está localizada a TSMC (Taiwan Semiconductor Manufacturing Company), detém 25% da produção global.  

Mas a instabilidade política na região, sob forte influência chinesa, preocupa os norte-americanos. Não à toa, em 2022, o presidente Joe Biden assinou o Chip Act. O projeto de lei prevê investimentos de US$ 52 bilhões (aproximadamente R$ 290 bilhões, na cotação atual) para financiar empresas do setor e iniciativas de pesquisa e desenvolvimento na área, incluindo aplicações militares da tecnologia. Em 2024, a Intel anunciou um acordo de US$ 8,5 bilhões em financiamento direto do governo para a empresa. Enquanto isso, a China alocou US$ 47,5 bilhões (cerca de R$ 260 bilhões) na terceira fase do seu Fundo Nacional de Investimento na Indústria de Circuitos Integrados. A União Europeia também não quer ficar para trás. Uma fábrica da TSMC, ao custo de US$ 10 bilhões (cerca de R$ 55 bilhões), está em construção na Alemanha com forte apoio do governo.  

Fábricas como a da TSMC e a da Intel são caras porque realizam a parte intensiva da cadeia produtiva dos semicondutores – ou seja, a produção dos chips propriamente ditos. Mas isso é coisa rara. Em geral, a fabricação de chips é hiper segmentada. As design houses, por exemplo, desenvolvem apenas os projetos dos circuitos integrados. Outras empresas se especializam em montagem, encapsulamento e teste dos chips, processo chamado de back-end. Além disso, ao lado da Samsung e da GlobalFoundries, a TSMC e a Intel são as únicas companhias que fazem chips no chamado estado da arte. Estes são os que possuem transistores menores, de até 8 nanômetros (para se ter uma ideia, um nanômetro equivale a 1 bilionésimo de metro), o que gera mais desempenho e menos gasto de energia.  

Parceria com universidades 

Tanto a Ensilica quanto a Impinj se instalaram no Parque Científico e Tecnológico da PUCRS em 2021. / Foto: Giordano Toldo

Apesar do domínio asiático, o Brasil busca se inserir na cadeia mundial de semicondutores. Hoje, o ecossistema nacional é quase todo composto por design houses – caso da EnSilica, instalada no Tecnopuc – e por empresas de teste e encapsulamento, como a HT Micron, cuja sede fica no Tecnosinos, em São Leopoldo (RS).  

A escolha por parques científicos e tecnológicos ligados às universidades não é coincidência. E tampouco é uma peculiaridade brasileira. Por exemplo: o centro de projetos da matriz da EnSilica, na Inglaterra, está localizado em um parque tecnológico em Oxford, ao lado de uma das maiores universidades do mundo.  

“A empresa sempre gostou de manter um relacionamento próximo com as universidades, com objetivo de atrair talentos”, explica Leão. “Por isso, sugeri o Tecnopuc.”  

A Escola Politécnica da PUCRS está no centro deste ambiente de inovação. Quando o assunto leva aos semicondutores, apenas um diploma não é suficiente para atuar na área. E a proximidade da Politécnica com empresas instaladas no Tecnopuc coloca os estudantes em contato com experiências reais do mercado de trabalho. Assim, eles ficam em condições de assumir posições em um setor carente de profissionais.  

Para levar essa realidade a mais centros universitários do País, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) promove cursos de formação em microeletrônica e semicondutores. Eles acontecem em parceria com universidades e empresas e oferecem bolsas de residência aos selecionados. O programa CI Inovador, por exemplo, abriu 250 vagas no início deste ano.  

A Impinj – que possui um centro de desenvolvimento de circuito integrado no Tecnopuc – deve receber alunos no período de residência, a última fase do programa federal, quando os selecionados integram grupos de trabalho dentro das empresas. Antes, eles têm um ano de capacitações teóricas e vivências internacionais. Os alunos devem chegar em 2025 na Impinj para trabalharem no desenvolvimento de chips e no laboratório de testes, também localizado no Tecnopuc.  

“Todos que se formaram nesses programas estão bem empregados. É uma iniciativa fundamental, a melhor forma do governo contribuir com o mercado e atrair empresas para cá”, avalia Laurent Courcelle, do centro de desenvolvimento da Impinj no Brasil. 

O desafio é dar constância às formações e aprofundar a relação entre academia e setor produtivo. “Essa proximidade com a indústria traz cases realistas e demandas atuais para as pesquisas dos alunos”, diz Fernando Moraes, professor da Escola Politécnica da PUCRS. Recentemente, Moraes orientou o mestrando Carlos Gabriel de Araujo Gewehr, que trabalhou em um projeto da EnSilica na área de criptografia pós-quântica. A pesquisa rendeu o prêmio de melhor dissertação de mestrado do Brasil pela SBMicro (Sociedade Brasileira de Microeletrônica). A tecnologia foi implementada em um circuito integrado, tornando-se um produto em comercialização.  

Caminhos para o Brasil  

Em meio aos movimentos do tabuleiro mundial dos semicondutores, o Brasil deve investir na fabricação de chips? Para Adão Villaverde, professor de Gestão do Conhecimento e da Inovação da Escola Politécnica da PUCRS, a resposta é sim: investir nesta etapa da cadeia produtiva é estratégica do ponto de vista comercial, científico e geopolítico: 

 “Sem chip, não tem transformação digital soberana. As economias que não dominam essa tecnologia, mais cedo ou mais tarde, serão superadas. Estamos em um momento singular para o Brasil mergulhar no tema”.  

Villaverde vê potencial de inserção no mercado de “chips maduros”, na casa dos 100 nanômetros. Ou seja, não se trata de encarar gigantes do setor, como a Samsung e TSMC, que estão produzindo “chips estado da arte” de 3 nanômetros. “O objetivo é buscar um mercado que esses players sequer disputam, o que representa uma fatia de 46% do mercado mundial”, explica. Nesse caso, o caminho seria uma renovação na Ceitec, o que custaria, segundo Villaverde, em torno de US$ 200 milhões (R$ 1,1 bilhão) – ou a metade disso, se a empresa optar por uma nova rota tecnológica em estudo. Cabe lembrar que, após entrar no PND em 2021, a Ceitec teve seu processo de liquidação revertido em 2023. No entanto, a estatal ainda carece de recursos para retomar a produção.  

Enquanto isso, o governo federal sancionou, em setembro de 2024, uma lei que criou o Programa Brasil Semicondutores (Brasil Semicon) e aperfeiçoou o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico à Indústria de Semicondutores (Padis). A medida prorroga e amplia incentivos tributários para empresas. Serão destinados R$ 7 bilhões por ano, totalizando R$ 21 bilhões até 2026, para estimular a pesquisa e a inovação nas cadeias de chips e eletroeletrônicos. Uma alternativa é fomentar as etapas de design e de teste e encapsulamento. São áreas que possuem valor agregado – e nas quais o Brasil possui expertise. Além do mais, não dependem de investimentos tão vultosos quanto uma fábrica. 

A Nvidia, uma das empresas mais badaladas no mundo dos chips, não possui nem uma fábrica sequer – no jargão industrial, uma fabless. O desenvolvimento e a propriedade intelectual de chips na área de computação gráfica e, mais recentemente, de inteligência artificial, é o que lhe garante um valor de mercado de incríveis US$ 2,86 trilhões (quase R$ 16 trilhões, mais que o PIB brasileiro em 2023, que foi de R$ 10,9 trilhões). Guardada as proporções, a EnSilica se prepara para ir além dos projetos e ser uma fabless com propriedade intelectual e controle da comercialização dos seus chips. Nesse cenário, Júlio Leão afirma que o escritório da EnSilica no Brasil cresce mais rápido do que o da Inglaterra – graças à qualidade dos engenheiros.  

“Em 2021, quando viemos ao Tecnopuc, disse que precisávamos de um lugar para 12 pessoas, mas que iríamos crescer para 30. Hoje, nossa sala tem apenas dois lugares vazios e a empresa deve expandir para 32 funcionários ainda neste ano”, comemora. 

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*Texto originalmente publicado na edição 195 da Revista da PUCRS, lançada no mês de dezembro de 2024. A produção foi cocriada com a República Conteúdo e a edição completa está disponível para download neste link.