PUCRS se mantém próxima da produção de games no Estado
quinta-feira, 30 de janeiro | 2025O Rio Grande do Sul está entre os três principais mercados de desenvolvimento de jogos eletrônicos do país. / Foto: Envato Elements
A Terra está em perigo. Os exércitos do nefasto Necterion dominaram Bitland, um planeta localizado em Beta-Universo – realidade paralela conectada ao nosso mundo. O plano de Necterion é atravessar essa ponte quântica para destruir a humanidade. A única chance de não virarmos pó reside nas habilidades de um garoto-lagarto chamado Guimo, um sentinela galáctico que cuida do portal entre os dois universos. Para ajudá-lo nessa missão, você precisa apenas de coragem – e de um processador 486 equipado com Windows 95 e kit multimídia.
O enredo de Guimo foi engendrado na mente do game designer Christian Lykawka. Em 1996, ano de lançamento do jogo de tiro em 2D, ele era estudante de Informática da PUCRS. Guimo passou a ser distribuído no Brasil e na Europa em 1997, iniciando a caminhada do estúdio Southlogic e a história da produção de games no Rio Grande do Sul. “Quando cheguei, era tudo mato”, brinca Lykawka. De fato, à época, o mercado quase não existia. E pouca gente via futuro em programar jogos eletrônicos. “Na faculdade, precisei lutar para que o ambiente aceitasse as minhas ideias”, relembra. Mas muita coisa mudou desde que o herói de Bitland travou suas primeiras batalhas.
Os games, atualmente, representam a maior receita da indústria de entretenimento mundial. Desde 2017, esse mercado movimenta mais dinheiro do que o cinema e a música combinados. Foram US$ 196 bilhões em 2023, segundo o relatório Gaming Report 2024, da Bain & Company. A cifra é superior à soma das receitas de streaming de vídeo (US$ 114 bilhões), streaming de música (US$ 38 bilhões) e da arrecadação global de bilheteria (US$ 34 bilhões). A perspectiva é de um crescimento médio de 6% ao ano até 2028, chegando a US$ 257 bilhões.
“Hoje, os games são a menina dos olhos da indústria criativa. As empresas desse setor hibridizam muito bem a parte artística com a tecnologia e vêm obtendo um crescimento exponencial”, confirma Cristiano Pinheiro, professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da PUCRS (PPGCOM) e coordenador do projeto Cluster GameRS.
Lançado em 2022, o Cluster GameRS tem o intuito de impulsionar a indústria de jogos eletrônicos no estado, por meio de incentivos, pesquisas e capacitações. A ação é financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs) e busca articular parcerias com poder público, setor privado e academia. Iniciativas como essa demonstram o atual estágio de maturidade da indústria gaúcha de games, um polo marcado pela criatividade e pelo pioneirismo.
O Rio Grande do Sul está entre os três principais mercados de desenvolvimento de jogos eletrônicos do país. O Brasil tem 1.042 estúdios de criação, de acordo com a Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Digitais (Abragames). Do total, 69 empresas ficam no estado – número inferior apenas a São Paulo (302) e ao Rio de Janeiro (107). E elas faturam alto.
Em 2023, a receita dos estúdios gaúchos chegou a R$ 33 milhões – um crescimento de 11% em relação ao ano anterior. Foram produzidos 189 games no período. A maior fatia (60%) inclui prestações de serviço para estúdios nacionais e internacionais, além de colaborações com parceiros do próprio estado. Os outros 40% são de títulos próprios, as chamadas Propriedades Intelectuais (PI). Os dados são da Associação de Desenvolvedores de Jogos Digitais do Rio Grande do Sul (AdjogosRS).
Criada em 2013, a AdjogosRS tem a função de reunir as empresas do setor, proporcionando oportunidades de divulgação, capacitação e crescimento a todo o ecossistema. “Temos a ideologia de socializar o conhecimento aos participantes, fomentando a importância da colaboração – e nunca da rivalidade”, ressalta Ivan Sendin, diretor executivo da entidade. Primeira associação estadual do país, a AdjogosRS tem 45 filiados – entre produtoras iniciantes, ascendentes e já estabelecidas.
A AdjogosRS oferece três valores de cota para adesão de empresas ou desenvolvedores, a depender do estágio de maturidade do negócio. O diferencial é que todas dão direito aos mesmos benefícios, como capacitações e intermediação de oportunidades. A ideia é garantir que os iniciantes possam crescer ao lado das marcas mais consolidadas.
Um dos expoentes do mercado gaúcho é a Rockhead, de Christian Lykawka. Sediado no Tecnopuc, o estúdio foi fundado em 2011 e é herdeiro da Southlogic, adquirida pela Ubisoft em 2009. A compra da desenvolvedora pela gigante francesa – dona de franquias consagradas, como Assassin’s Creed e Prince of Persia – é considerada um marco na indústria brasileira. O interesse não foi despertado por nenhuma aventura espacial, mas por um game que simula o planejamento de uma cerimônia de casamento. “A Ubisoft adorou porque tinha a ver com a sua linha para o público feminino”, lembra Lykawka. O conceito de jogos só para meninas, aliás, é coisa do passado. Hoje, elas são maioria entre os gamers brasileiros – 50,9%, segundo a Pesquisa Game Brasil 2024 (PGB). E já se consolidam na indústria gaúcha, com 21% dos postos de trabalho e 10% das cadeiras de sócios, conforme os dados da AdjogosRS.
A experiência da Ubisoft no País não durou muito: encerrou-se em 2010, devido a mudanças no mercado. Uma delas foi a ascensão dos games para smartphones. A PGB mostra que, hoje, os jogos de celular são a preferência de 49% dos players brasileiros, bem à frente dos consoles (22%) e dos computadores (15%).
Ao longo da década passada, muitos estúdios surgiram e conseguiram crescer apostando em uma mescla de advergames (jogos produzidos para as empresas) e criações próprias. É o caso da Aquiris. Instalada no Tecnopuc desde 2011, a empresa surgiu em 2007 e começou oferecendo tecnologias de realidade virtual. Depois, migrou para os games – fornecendo para marcas como Globo, Warner e Cartoon Network. O grande salto, entretanto, veio com uma PI: o jogo de corrida Horizon Chase, lançado em 2015.
Inspirado no clássico Top Gear, o título catapultou a Aquiris para o topo de plataformas e eventos do setor. A edição de 2016 do Big Festival, maior evento de jogos independentes do mundo, escolheu Horizon Chase como melhor game do ano. Foi a primeira vez que uma produção brasileira ganhou a principal categoria. “Esse destaque fez com que fôssemos vistos como um dos estúdios talentosos no mundo”, conta Israel Mendes, diretor de marketing da Epic Games Brasil. Detentora da plataforma Fortnite, a Epic se interessou pelo potencial da Aquiris e ingressou como acionista da empresa em 2022, encampando a marca definitivamente no ano seguinte.
Israel Mendes, diretor de marketing da Epic Games Brasil, foi homenageado no Prêmio Alumni PUCRS em 2023 na categoria Inovação e Emprendorismo. / Foto: Igor Bandera
Os cases da Aquiris e da Southlogic atestam o manancial de talentos que o estado possui. “A produção de games é um produto de exportação do Rio Grande do Sul, mesmo que não movimente contêineres. E o legal é estarmos conseguindo manter os profissionais aqui”, celebra o professor André Pase, um dos coordenadores da Pós-Graduação em Desenvolvimento de Jogos Digitais da PUCRS. Criado em 2010, o curso oferece uma abordagem com duas trilhas: Programação e Arte e Narrativa. Os alunos podem cursar uma, ambas ou dar ênfase a uma área e acessar disciplinas da outra, sem custo adicional.
A ideia de um currículo híbrido tem tudo a ver com a multidisciplinaridade do setor de games. Trata-se de um mercado que pode absorver não apenas programadores e designers gráficos, mas também arquitetos, psicólogos e publicitários, entre outras áreas.
“O formato da pós permite o aprofundamento em uma área específica, sem abrir mão de uma visão geral do processo de desenvolvimento”, explica Marcelo Cohen, professor da Escola Politécnica e também coordenador do curso. Essa visão holística, inclusive, é uma das principais demandas das empresas.
Atualmente, o gap do mercado é aprofundar a expertise em Game Design. O conceito é amplo e se refere à experiência proporcionada ao jogador, incluindo valências como jogabilidade, engajamento na história, adaptação às diferentes plataformas e inovação no formato. “É uma bandeira que levantamos para o mercado”, reforça Israel Mendes, da Epic. “Um bom game designer pode levar ótimas experiências para outras áreas, do cinema ao mercado financeiro”. O tema é tão importante que o curso da PUCRS está sendo remodelado com base nesse vetor – e passará a se chamar “Especialização em Design de Jogos Digitais”.
A sinergia entre o setor acadêmico e o desenvolvedoras é outro traço do cenário gaúcho de games. Na PUCRS, por exemplo, a pós sempre contou com profissionais de mercado entre os membros do corpo docente. A própria formatação do curso teve participação direta de empresas como Ubisoft e Rockhead. Hoje, o modelo é perpetuado por meio de uma parceria com a Epic.
“Essa interação nos ajuda muito a pensar o curso, alinhando o desenho das disciplinas às necessidades do setor. Além disso, o aluno tem a chance de aprender e ser avaliado pelos profissionais da área”, ressalta André Pase.
A Epic também oferta bolsas mensais de R$ 500 aos 10 melhores alunos de cada semestre. E a demanda pelo capital humano é intensa por parte das empresas.
A rápida ascensão das empresas e as particularidades do setor levam a uma escassez de mão de obra. Os estúdios têm optado por acolher os novos talentos, egressos dos cursos e de outras frentes, para lapidá-los conforme as necessidades. “Há um acordo para que as empresas não contratem talentos empregados em outros estúdios locais, como forma de preservar o investimento feito no profissional”, conta Ivan Sendin, da AdjogosRS. A porta de entrada para o setor, aliás, não se limita aos cursos acadêmicos.
Existem eventos específicos para dar vitrine a novos desenvolvedores. É o caso dos Game Jams, desafios semelhantes ao hackathon, em que é preciso conceber um jogo do zero em um período determinado. Também há muita oferta gratuita de capacitação para quem pretende aprimorar suas habilidades de desenvolvimento e de negócios. Os canais da AdjogosRS e do Cluster GameRS nas redes sociais são um bom ponto de partida.
O momento do setor de games no Rio de Grande do Sul, como se vê, é de franca aceleração. Além do esforço combinado entre empresas, governo e academia, existe uma maior aceitação do potencial de negócio dos jogos eletrônicos como um todo. Isso também é vital para a ampliação da mão de obra.
“A visão dos pais sobre a possibilidade de os filhos viverem da produção de games mudou muito. Hoje, o receio em relação a esse segmento é igual ao de qualquer outra área criativa”, analisa Cristiano Pinheiro, do PPGCOM.
A principal lacuna, segundo o professor, está na necessidade de fomentar um volume maior de empresas. Em especial, um apoio às startups de médio porte para que as grandes do estado possam puxar a prestação de serviço. “Estamos na boca do gol para um novo ciclo de crescimento.”
Em 2024, o Google aportou R$ 1 milhão para a ROCKHEAD investir em seu jogo do corrida Starlit Kart. O estúdio foi fundado pelos criadores de Guimo, marco na história dos games no Rio Grande do Sul
A PUCRS se mantém muito próxima da cadeia de produção dos jogos eletrônicos no Rio Grande do Sul. Isso inclui a abordagem ao tema desde a graduação, em uma integração entre a Escola Politécnica e a Escola de Comunicação, Artes e Design – Famecos. O melhor exemplo é a Certificação em Jogos Digitais, que contempla teoria e prática de computação gráfica, narrativas, simulações gráficas e aplicações de realidade virtual e aumentada.
Algumas disciplinas da certificação fazem parte do currículo fixo da graduação e da pós em Ciência da Computação – são os casos do Projeto e Desenvolvimento de Jogos e Animação e Realidade Virtual. Já pelo lado da Famecos, a arte de contar histórias por meio de jogos é trabalhada no Laboratório de Games e Narrativas Gráficas, do curso de Escrita Criativa. Também há a disciplina de Produção Audiovisual, que aborda conceitos básicos sobre narrativas interativas e conexões possíveis com outros formatos.
Na outra extremidade do processo, o Tecnopuc cumpre a função de oferecer um espaço de ebulição criativa e de fomento de negócios para as empresas do setor.
“Estar em um parque tecnológico, imerso em um cenário de inovação e sinergia, é uma grande vantagem. E a proximidade com a vida acadêmica torna o ambiente incrível”, destaca Israel Mendes, da Epic Brasil.
Na prática, trata-se de uma via de mão dupla. Isso porque a presença de empresas como essas torna-se um atrativo aos alunos interessados em se aproximar do mercado. “A presença de estúdios com renome internacional é um grande benefício não só para os alunos da PUCRS, que podem ingressar nessas empresas, mas também para outros profissionais interessados na área”, completa o professor Marcelo Cohen. Além da Epic e da Rockhead, o Tecnopuc conta com marcas como Truddy, Letters.io, Ideias a Vista e FazGame, todas ligadas ao setor.
“A parceria que temos com a Pós-Graduação da PUCRS é muito importante. Estamos investindo na categoria de base, na formação de talento. É uma das portas de entrada para o mercado. Assim, é importante que o curso se refine mais a cada ano”, finaliza Israel Mendes, diretor de marketing da Epic Games Brasil.
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*Texto originalmente publicado na edição 195 da Revista da PUCRS, lançada no mês de dezembro de 2024. A produção foi cocriada com a República Conteúdo e a edição completa está disponível para download neste link.