Impacto Social

Resiliência: o trunfo das cidades inteligentes  

Mais do que tecnologia, é preciso unir diversos setores da sociedade em por soluções que criem cidades mais resistentes às adversidades climáticas 

segunda-feira, 27 de janeiro | 2025

Usina do Gasômetro, na capital gaúcha: ponto de resgate durante a enchente de 2024. / Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

Fevereiro de 2023. A cidade de Punta del Este, no litoral do Uruguai, recebe a 8ª edição da Plataforma das Américas e do Caribe para Redução do Risco de Desastres. Na ocasião, Porto Alegre formaliza sua candidatura a “hub de resiliência”. Essa espécie de selo, entregue pela Organização das Nações Unidas (ONU), reconhece cidades preparadas para enfrentar desastres e para capacitar outros municípios. Uma suposta competência que seria, impiedosamente, posta à prova apenas alguns meses depois. 

Maio de 2024. Uma chuva de proporções históricas cai sobre Porto Alegre. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o acumulado de chuva naquele mês bate o recorde da série documentada há 124 anos. Pela primeira vez, a estação meteorológica do bairro Jardim Botânico supera a marca dos 500 milímetros (mm) de chuva para um mês. Como se não bastasse, a situação é agravada pelo volume colossal de chuva que também atingiu o interior do Rio Grande do Sul. Entre o fim de abril e o início de maio, foram dez dias de chuva forte. Os rios Taquari, Caí, Pardo, Jacuí, Sinos e Gravataí transbordaram, causando destruição e mortes na Região dos Vales. Posteriormente, a água desses rios escoou para a bacia hidrográfica do Guaíba, na Região Metropolitana da capital. 

Em 3 de maio, o nível do lago Guaíba passou dos 4,76 metros, marca da enchente histórica de 1941, e chegou oficialmente a 5,37 metros nos dias seguintes. Rodoviária, aeroporto, ilhas, ruas e avenidas de dezenas de bairros das zonas central, norte e sul de Porto Alegre: tudo ficou embaixo da água. E várias outras cidades foram afetadas também. Levantamento oficial do Governo do Estado identificou que, das 497 cidades gaúchas, 471 sofreram com a chuva. Pelo menos 182 pessoas morreram e mais de meio milhão foram expulsas de casa. A Confederação Nacional dos Municípios e a Confederação Nacional de Comércio de Bens, Serviço e Turismo estimam prejuízos, respectivamente, de R$ 12,2 bilhões e R$ 58 bilhões devido ao evento climático.  

Setembro de 2024. Cinco meses depois da enchente, ficou claro que a gestão do sistema de recursos hídricos urbanos é frágil e pouco resiliente em Porto Alegre – e, na verdade, em boa parte do Brasil. No caso da capital gaúcha, descobriu-se (da pior maneira possível) que as comportas do muro de contenção não estavam bem vedadas. Algumas estavam abauladas e muitas não contavam com todos os parafusos. A falta de manutenção das comportas comprometeu o funcionamento das casas de bomba – responsáveis por jogar no Guaíba a água que porventura invadisse a área urbana. Em 2023, enquanto buscava reconhecimento internacional na área de redução de risco de desastres, Porto Alegre não chegou a investir no seu sistema de prevenção contra enchentes. A promessa da prefeitura era gastar R$ 510 milhões na reestruturação de diques, avaliação e melhoria de comportas e casas de bombas e realização de um laudo estrutural no muro.  

Prevenir é melhor que remediar 

A cidade de Salvador, na Bahia, elaborou um plano de redução de riscos, programas para capacitar moradores em áreas vulneráveis e um centro de monitoramento após os desabamentos que mataram 17 pessoas em 2015. Medidas como essas deram à capital baiana o selo de hub de resiliência no evento realizado em Punta del Este. Campinas, que também tem o selo da ONU, definiu áreas de risco e transferiu moradores para diminuir em 60% o número de áreas ameaçadas da cidade depois que seis pessoas morreram em decorrência das chuvas em 2003. Em nível federal, a Política Nacional de Proteção e o Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden) foram criados em resposta ao evento climático com maior número de vítimas no Brasil, com mais de 900 mortos, na região serrana do Rio de Janeiro.  

A capital baiana é certificada pela ONU como Hub de Resiliência. / Foto: Leonorardo Dourado/Pexels

André Salata, professor da Escola de Humanidades da PUCRS, atribui o atraso para tomar providências ao descompasso entre o horizonte com o qual os agentes políticos trabalham e o tempo necessário para estratégias de prevenção mostrarem seus efeitos. 

“Acaba-se trabalhando sempre com um prazo de, no máximo, quatro anos. E os episódios climáticos exigem medidas cujos resultados só vamos ver depois de décadas”, afirma.  

A práxis dominante no Brasil vai contra um ditado muito bem adaptado ao contexto da mudança climática e levado à risca por cidades inteligentes: prevenir é melhor do que remediar. Segundo o Escritório das Nações Unidas para Redução do Risco de Desastres (UNDRR, na sigla em inglês), cada 1 dólar investido em prevenção gera uma economia entre 7 e 15 dólares em ações de resposta aos desastres. Além disso, países com sistemas efetivos de prevenção têm uma mortalidade oito vezes menor.  

Copenhague, na Dinamarca, por exemplo, implementou o Cloudburst Master Plan (Plano Diretor para Tempestades), remodelando 250 espaços públicos para ajudar na retenção ou redirecionamento de águas pluviais. A ideia foi usar a capacidade natural de retenção das árvores, dos arbustos e do solo e deixar a água pluvial fluir para locais onde não seja destrutiva. “É um exemplo de solução inovadora e sustentável, baseada em políticas públicas eficazes”, destaca Jaime Federici Gomes, professor de Engenharia Civil da Escola Politécnica da PUCRS.  

Entre outros aspectos, o professor destaca a necessidade de um planejamento urbano que considere áreas de risco, sistemas de alerta precoce, redundância na proteção contra cheias, planos de ações em emergência e qualificação da infraestrutura de órgãos como a Defesa Civil.  

É o que também indica Mima Feltrin, arquiteta e urbanista pela PUCRS. Mestre e pesquisadora na área de inundações, ela cita Tóquio e Nova York como referências no enfrentamento a enchentes e outros eventos climáticos. Cidade-esponja, a capital japonesa utiliza áreas verdes – como parques – para escoar a chuva, e possui uma estrutura de túneis, com 50 metros de profundidade, para absorver a água e bombeá-la para um rio. Nova York, por sua vez, está construindo o “The Big U”, um sistema de proteção que cerca Manhattan, ao mesmo tempo que cria espaços públicos para as comunidades locais. Os dois projetos consideram a infraestrutura existente e as dinâmicas naturais das cidades para se antecipar aos fenômenos climáticos.  

“Assim, é possível criar soluções que não só mitigam os efeitos desses eventos, mas que também promovam uma maior resiliência urbana, protegendo tanto a população quanto o patrimônio construído”, afirma Feltrin. 

Cidades inteligentes  

Eventos climáticos extremos estão mais frequentes devido ao aquecimento global. Um levantamento do cientista brasileiro Carlos Nobre prevê aumento de 25% nas chuvas extremas no Rio Grande do Sul, caso a temperatura média global suba 3°C na comparação com a era pré-industrial. Mesmo se o aquecimento ficar limitado a 1,5°, esse tipo de ocorrência será 15% mais frequente em solo gaúcho. O problema: a temperatura média global atualmente está 1,2° acima da era pré-industrial, segundo dados do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU).  

Diante desse contexto, o conceito de cidades inteligentes voltou a ganhar protagonismo. Criado nos anos 2000, o termo denominava principalmente grandes metrópoles, como Londres e Nova York, e fazia alusão aos seus portfólios de tecnologia. Hoje, os atributos de uma cidade inteligente são coletivos e dependem do exercício ativo da cidadania por seus moradores. Além disso, o conceito não é exclusivo dos grandes centros. Os eventos climáticos recentes no Rio Grande do Sul deixam claro que mesmo cidades pequenas e médias precisam investir em soluções inteligentes para se tornarem resilientes. Além da adoção de tecnologias, isso envolve o desenvolvimento de mecanismos de participação direta da população na tomada de decisões e de uma reflexão sobre a ocupação da paisagem urbana, entre outros aspectos.  

“Cidades são muito complexas. É impossível que a prefeitura sozinha entenda todas as demandas. A cidadania ativa das comunidades é importante para que o poder público tenha essa percepção mais fina das necessidades”, explica Edimara Mezzomo Luciano, professora de Administração da Escola de Negócios da PUCRS. “A inteligência da cidade vem do trabalho conjunto entre gestão pública e cidadãos.”  

Não à toa, o orçamento participativo (mecanismo onde a população escolhe sobre a aplicação de recursos em obras e serviços, implementado de maneira pioneira em Porto Alegre, no início da década de 1990) é amplamente citado na literatura sobre o tema, sendo modelo de iniciativa inteligente para cidades como Paris, Montevidéu, Toronto, Bruxelas e La Plata.  

Ao poder público, cabe manter uma comunicação fluida com os cidadãos através de uma rede ampla de canais, como aplicativos e telefones de resposta rápida. Esses canais servem para atender demandas simples, como uma poda da árvore. No caso da redução de risco de desastres, as linhas de comunicação fazem parte do sistema de prevenção que alerta os moradores em áreas vulneráveis.  

“Em paralelo, a população precisa ser treinada frequentemente para situações de evacuação – seja dentro de ambientes fechados ou pelas ruas da cidade”, defende Soraia Musse, professora de Ciência da Computação da Escola de Tecnologia da PUCRS.  

Como pesquisadora, ela desenvolveu softwares que reproduzem o comportamento de pessoas. A tecnologia é utilizada para traçar as melhores estratégias de evacuação em estádios de futebol, escolas, prédios públicos e boates. Desde a pandemia de covid-19, Musse e sua equipe usam os softwares para simular dinâmicas populacionais na malha urbana, com objetivo de monitorar possíveis aglomeramentos e calcular as chances de contágio pelos bairros. Na enchente de Porto Alegre, os softwares ajudaram a calcular quantos abrigos seriam necessários e em quais áreas da cidade, apresentando soluções de evacuação e busca por acolhimento.  

Entre a graça e o lamento, a professora conta que costuma ser procurada apenas em momentos de crise, como o incêndio na boate Kiss, a pandemia e as recentes inundações. Poderia ser diferente se tecnologias como os softwares de simulação de multidões se tornassem parte de um sistema efetivo de prevenção para cidades mais inteligentes. 

“As simulações computacionais servem para prever cenários que esperamos que não aconteçam, mas para os quais precisamos nos preparar. É uma tecnologia útil em aspectos como mudança climática e mobilidade urbana”, afirma Soraia Musse. “As ferramentas computacionais têm poder para gerar diversos cenários para uma tomada de decisões com melhores informações em diversas áreas. É tomada decisão baseada em simulação”, completa.  

A tomada de decisão baseada em simulação lembra o mantra da tomada de decisão baseada em dados. Nos dois casos, ter informações atualizadas, acessíveis e em grande quantidade é fundamental. A articulação entre dados públicos e de empresas privadas é parte desse processo. Por exemplo: Copenhague, na Dinamarca, criou o City Data Exchange, uma espécie de Bolsa de Dados da Cidade com 65 fontes diferentes. Um dos objetivos é motivar empresas terceirizadas a desenvolver soluções orientadas por dados para problemas urbanos, como engarrafamento, poluição e assaltos. Já a cidade de Portland, nos Estados Unidos, trocou dados com o Strava (a “rede social para atletas” que virou febre entre ciclistas e corredores) para melhorar a disponibilização de ciclofaixas. Acordos e regulações para compartilhamento de dados de outras companhias de tecnologia, como a Uber e o Airbnb, podem ajudar em ações mais inteligentes em setores como mobilidade e moradia.  

Ou seja, uma cidade inteligente não depende apenas da tecnologia – embora ela seja indispensável. “A tecnologia é importante para acelerar processos e buscar saídas para problemas difíceis de resolver, mas precisamos evitar o uso de tecnologia excessiva antes entender bem quais são os problemas”, diz Edimara Mezzomo Luciano, da Escola de Negócios da PUCRS. Uma alternativa, nesse caso, é criar comitês ou conselhos de governança de TI. Com representação ampla, o papel desses órgãos é indicar desafios, pensar nas soluções mais adequadas (especialmente à realidade local) e criar diretrizes para a adoção de tecnologias nas cidades.  

Um novo olhar  

Central de Resíduos: desde 2018, a PUCRS faz gestão dos materiais descartados no Campus. Iniciativa é fundamental para a proteção ao meio ambiente. / Foto: Giordano Toldo

Quando perguntada sobre o conceito de cidades inteligentes, a professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Escola Politécnica da PUCRS Cibele Vieira traz à tona um novo olhar: o das cidades circulares. Trata-se de um paradigma que ganhou força a partir de 2020, e que de certa maneira combina os conceitos de cidade inteligente e cidade sustentável. Por essa visão, as soluções de mobilidade, gestão de resíduos e da água, moradia, produção de alimentos, entre outras, devem formar um ciclo, mantendo a infraestrutura urbana, os produtos e insumos em uso durante o maior tempo possível. O objetivo é reduzir o impacto ambiental e gerar valor para toda a sociedade, dos centros urbanos às periferias. “Cidades circulares envolvem um olhar mais complexo para os problemas, pensando a inteligência de uma forma mais global”, afirma.  

Segundo Vieira, isso passa por transformar o modo como, historicamente, as cidades são ocupadas no Brasil. Ao invés de enfrentar problemas de mobilidade, ampliando vias e estacionamentos que estimulam o uso de carros particulares, a professora defende a integração entre modais de transporte a partir de iniciativas do poder público e de empresas privadas. No lugar de condomínios cercados por muros que minam a interação social nos bairros e criam “cidades” para gerar uma falsa sensação de segurança, ela defende o respeito a um Plano Diretor capaz de regular o crescimento urbano, preservando áreas históricas dentro da paisagem e definindo espaços onde a cidade possa crescer verticalmente, como fizeram Paris e Londres, entre outros exemplos.  

“As cidades têm que ser convidativas para as pessoas. Temos que bater na tecla da importância de se apropriar da cidade e sentir que ela pertence à comunidade. Ou seja, de alguma forma se reconhecer nela e viver este espaço de maneira comunitária. Isso faz parte da criação de uma massa crítica capaz de entender que o legal da cidade é a troca, o intercâmbio”, acrescenta Vieira, que é coordenadora do curso de especialização Cidades Sustentáveis e Inteligentes na PUCRS Online.  

Em relação ao tema ambiental, intercâmbio é novamente palavra-chave. Não é possível, por exemplo, falar da enchente de Porto Alegre sem entendê-la como um fenômeno atrelado à região dos Vales. “Esse episódio”, complementa Vieira, “pode servir para que a gente compreenda a necessidade de interlocução entre as cidades, das conexões regionais, para pensar o ambiente natural daqui para frente”. 

*Texto originalmente publicado na edição 195 da Revista da PUCRS, lançada no mês de dezembro de 2024. A produção foi cocriada com a República Conteúdo e a edição completa está disponível para download neste link.