O Brasil é o país com o maior número de contaminados pelo novo coronavírus entre povos originários, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Mesmo com as ações de contingenciamento dos órgãos oficiais, diversos são os desafios dos profissionais da área da saúde frente à Covid-19. A doença preocupa tanto a população indígena que vive em aldeias afastadas, quanto os grupos que moram próximo aos centros urbanos e sobrevivem com o que conseguem vender, como artesanatos, artes e frutos.
Ao longo das últimas semanas, os principais veículos de comunicação do Brasil só falam sobre um tema: a pandemia provocada por uma família de vírus que causam infecções respiratórias graves e podem levar ao óbito. Seu nome é uma referência à data de descoberta, que aconteceu em dezembro de 2019, na China, e acabou se alastrando pelo mundo inteiro.
Em 48 horas, o número de nativos infectados pelo coronavírus aumentou 156%. Entre os dias 13 e 15 de abril, o total de casos disparou de nove para 23, conforme o Sesai. Três mortes já foram registradas entre as etnias kokama, tikuna e ianomâmi. O Amazonas, estado que concentra o maior número de pacientes, 95% do todo, contabilizou duas delas. Outros 23 casos suspeitos aguardam os resultados dos exames.
“Isso é uma coisa nova para todo mundo. A orientação é o isolamento, mas no Rio Grande do Sul já temos suspeitas dentro das aldeias”, explica Edison Hüttner, professor da PUCRS e coordenador do Núcleo de Estudos em Cultura Afro-Brasileira e Indígena (Neabi).
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As culturas evoluem para sobreviver
Os nativos retiram os materiais necessários para fazer os artesanatos, como cipó e outras raízes, do mato e das florestas. Porém, nesse período, eles não podem vender sua arte porque correm mais risco de transmissão. “O artesanato é a fonte de renda das aldeias. Com essa situação, os índios ficam dependentes de ajuda. Em alguns casos, os municípios entregam cestas básicas para eles não precisarem sair”, conta Hüttner.
As pessoas doentes são encaminhadas aos hospitais do município, onde pegam os remédios. Porém, outros fatores históricos podem agravar a situação. “Em geral, os indígenas têm muitos problemas respiratórios, principalmente as crianças, causados, em parte, pelos costumes milenares – como fazer fogueiras e utilizar cachimbos nas ocas, com a fumaça dentro de casa, por exemplo” explica o professor.
Saúde indígena
Por viverem em isolamento por muito tempo, praticamente durante toda a sua existência, os indígenas não têm imunidade para as doenças das pessoas que vivem na cidade. Conforme informações da Fundação Nacional do Índio (Funai), divulgadas no jornal El País, se uma doença não for tratada, ela pode exterminar de 50% a 90% de um grupo. No caso da Covid-19, esse potencial poderia se intensificar.
Edison Hüttner explica que, mesmo com seis polos de Saúde no Rio Grande do Sul, muitas regiões sofrem com a precarização do sistema e a falta de recursos. Na BR 116, por exemplo, que abrange os municípios de Guaíba, Barra do Ribeiro e Camaquã, encontram-se 13 aldeias, com 749 indígenas Guaranis. “Têm apenas dois enfermeiros que trabalham ali, não têm médicos ou dentistas atuando no momento”, explica.
Conforme os órgãos oficiais de saúde, a população idosa – e indígena – é o principal grupo de risco do coronavírus. Desses 749 indígenas citados, 48 membros têm entre 70 e 80 anos e são os que correm mais risco em caso de contágio. Hüttner destaca que a expectativa média de vida dos nativos no Brasil é de 49 a 59 anos, enquanto a das demais pessoas é de 75 anos, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Atendimento à população
No Brasil, existem espaços criados para prestar atendimento qualificado de atenção à saúde indígena, com uma organização etnocultural, dinâmica e geográfica delimitada. São 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) espalhados pelo território nacional. Sua estrutura conta com unidades básicas de saúde, polos base e as Casas de Saúde Indígena. Na região Sul do País, existe apenas um desses distritos, com sede em Santa Catarina.
Conforme o portal do Ministério da Saúde, os polos são a primeira referência para as Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI), que atuam nas aldeias. Eles podem ficar em terras nativas (tipo 1), com atividades de saúde, ou no município de referência (tipo 2), com funções técnicas e administrativas. “Os nativos são atendidos pelo SUS desde 1999, pela Lei no 9.836, mas o ideal seria que as referências em saúde estivessem dentro das comunidades, porque são realidades diferentes, que exigem especialistas com experiência na área. Em Manaus, existe a Casa De Apoio à Saúde Indígena, que acolhe e atende os doentes na região. Na Aldeia Kaingang Fág Nhin (Lomba do Pinheiro), em Porto Alegre, existe uma Unidade de Saúde Indígena, por exemplo”, acrescenta Hüttner.
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Povos originários
O nome “indígena” é uma referência aos primeiros habitantes de um território não colonizado. Segundo Julie Dorrico, indígena Macuxi e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Escola de Humanidades da PUCRS, essa é a forma mais adequada de se referir a esses povos. “Os indígenas têm procurado ressignificar as palavras, e indígenas refere-se aos originários, às populações tradicionais que já habitavam este território antes da chegada dos colonizadores europeus. Nossos povos não se veem como ‘tribos’, que é algo do contexto de grupos urbanos. Nós nos vemos como nações. ‘Índio’ é um termo muitas vezes utilizado pejorativamente”, explica.
Julie também é escritora, palestrante do TEDx e ativista pelas causas indígenas, e lembra em seus depoimentos sobre a importância da ancestralidade. “Existe um desafio em descolonizar as visões sobre a população nativa, colocando em xeque a própria história tida como oficial. Esse é um grande enfrentamento social, ideológico e, principalmente, político, onde há uma pequena representação”, destaca.
A autora ressalta a importância do trabalho realizado pelas lideranças indígenas, artistas e da mídia, que têm ajudado a dar visibilidade para o tema. Entre eles, a Rádio Yande, com conteúdo especializado; a ativista e pedagoga Raquel Kubeo; e Iracema Nascimento, a kujá (xamã) kaingang e líder política.
Segundo o levantamento realizado pelo último Censo do IBGE, existem mais de 800 mil indígenas no Brasil. No Rio Grande do Sul, são quase 33 mil e, desses, 23 mil vivem nas aldeias, em 65 municípios. Segundo a Agência France Presse (AFP), são pelo menos 107 povos que vivem em isolamento e “intocados”, ou seja, nunca tiveram contato com o mundo exterior.
Por estarem longe, além de ficarem expostos a diversos perigos, também podem representar riscos – uma vez que costumam reagir violentamente. Mesmo assim, exploradores de recursos naturais representam um perigo ainda maior aos grupos afastados. “O narcotráfico constitui outra ameaça crescente à vida dos povos em isolamento voluntário e contato inicial”, afirma a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em um parecer.
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Descolonizando as visões
“No campo da literatura, temos um grande desafio em descontruir a imagem que se formou sobre a figura indígena, ora como bom selvagem ora demonizado, ou com tradições distintas homogeneizadas. Uma grande característica dos indígenas é ter uma formação que possa contribuir com suas aldeias e povos” enfatiza Julie, dando o exemplo de indígenas que se formam em Direito, Medicina e outras profissões para ajudar suas comunidades.
Dario Agustin Ferreira é estudante Psicologia na PUCRS e já estudou Filosofia e Teologia, mas, aos 30 anos, uma das suas paixões é a Linguística. Nascido no Paraguai, cresceu falando guarani e espanhol e, agora, é a principal referência para as traduções do Naebi. “Dependendo do contexto familiar, o guarani paraguaio é muito parecido com o falado nas aldeias indígenas brasileiras, com poucas variações na pronúncia”, conta.
Ele já morou em Buenos Aires e na província de Santa Fé, na Argentina, mas está no Brasil desde 2015 e enfatiza a importância de conhecer a ancestralidade. “Indígenas são pessoas autônomas da terra, muitas vezes marginalizadas. Mesmo após o período de colonização, teve uma miscigenação cultural. Conhecer a cultura indígena é conhecer os nossos antepassados. Eles trazem a nossa identidade e, para tentar preservar a cultura, tentam fechar a sua cultura em si mesmos, vivendo o Tekoa, modo de ser e viver guarani”, conclui.
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Guardiões da terra
Com a suspensão e os rodízios de trabalhadores em diversas áreas, o enfraquecimento da fiscalização é uma das principais preocupações dos nativos. “Pedimos a retirada imediata de todos os invasores das terras indígenas e dos territórios para impedir o avanço do vírus: os garimpeiros, madeireiros, caçadores, narcotraficantes, grileiros, missionários e turistas que são vetores de transmissão”, disse Nara Baré, presidente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), durante uma entrevista publicada pela agência Reuters.
Esses fatores causam o aumento da exploração ilegal de madeira na Amazônia e, consequentemente, das terras indígenas. A partir de informações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o jornal O Estado de São Paulo identificou que as áreas desmatadas dobraram de 2.649 quilômetros quadrados, para 5.076 quilômetros quadrados no período de quarentena.