As transformações geradas pela tecnologia e pela internet estão cada vez mais impactando nossa forma de viver. Isso influencia tanto hábitos simples, como pagar uma conta ou pedir comida em casa, quanto processos mais complexos, como o rumo de uma eleição. Diversas pesquisas vêm sendo realizadas sobre essa temática, intitulada tecnopolítica. Na Universidade, o pesquisador e professor das Escolas de Direito e de Humanidades Augusto Jobim do Amaral dedica sua atuação acadêmica a estudos sobre os impactos da evolução digital na política.
O docente, que desenvolve pesquisas sobre tecnopolítica nos Programas de Pós-Graduação em Ciências Criminais (PPGCCRim) e em Filosofia (PPGFil), explica ainda que o conceito diz respeito ao modo como processos de ação, comunicação e gestão políticas são modulados pela tecnologia. Segundo ele, se essas transformações podem trazer benefícios, também podem criar profundas instabilidades nas democracias modernas.
Atualmente as práticas tecnológicas produzem efeitos fundamentais nas relações de poder. Augusto explica que os mais profundos dilemas em termos políticos, éticos, jurídicos, sociais e comunicacionais nos dias de hoje são compostos pelas dinâmicas forjadas por uma cultura tecnológica. Isso acontece quando existe uma automatização do pensamento, ou seja, quando o pensamento se torna cálculo e vemos a tecnologia como solução de nossos problemas sociais e políticos, em uma espécie de utopismo digital.
Um exemplo desse movimento, citado pelo pesquisador, é quando as pessoas utilizam aplicativos de monitoramento da alimentação. Além de, em alguns lugares, o usuário estar fornecendo dados como referência para preços de planos de saúde, ele é deslocado do real problema de saúde pública na direção de uma responsabilização pessoal. “Em outros termos, somos desviados de um problema coletivo sobre, por exemplo, a indústria de alimentos, que contribui para a obesidade e outros problemas de saúde. Assim, cria-se uma noção que os problemas são individuais e não de todos”, explica Augusto.
Outro exemplo são os aplicativos que têm como objetivo auxiliar o serviço de trânsito e manutenção de uma cidade. Nesse caso, o app ajuda a identificar onde há buracos na rua para saná-los o mais rápido possível, sem discutir a causa dessas ocorrências. “Gerenciam-se os efeitos sem perguntar ou discutir as escolhas políticas em torno do orçamento na manutenção das vias públicas que poderiam explicar e evitar a tamanha quantidade de defeito nas vias”, conclui o professor. Para ele, por mais banais que sejam estas situações, sinalizam um sintoma de algo muito mais radical na direção de uma espécie de “morte da política”.
Augusto comenta que o problema se amplifica quando a tecnologia é utilizada como verdade absoluta, sem que as pessoas percebam que os algoritmos e dados automatizados produzidos em larga escala foram criados a partir de escolhas políticas que não são neutras. O docente conta que em bancos, por exemplo, são utilizados e-scores para prever a possibilidade de adimplência das pessoas tendo como base onde habita ou com quem se relaciona. Já dispositivos de predição criminal buscam prever se a pessoa voltará a delinquir ou mesmo determinará sua pena a cumprir levando em consideração a cor da pele, onde mora, se possui amigos com passagem na polícia, entre outros proxies que configuram opiniões (muitas vezes preconceituosas) no formato de código.
“Esses e outros sistemas tecnológicos apenas reforçam preconceitos. Porque dentro destes algoritmos nada mais estão do que escolhas políticas escolhidas que nada são neutras. Assim, eles ampliam o racismo da seletividade penal e invisibilizam as piores desigualdades”, finaliza Augusto.
Recentemente, Amaral organizou o livro intitulado Algoritarismos, junto com o professor espanhol Jesús Sabariego, da Universidad de Sevilla (US), e com o pesquisador do PPGCCRim Eduardo B. Salles. A obra reúne 34 pesquisas expostas em quatro idiomas sobre as principais questões relacionadas à tecnopolítica na atualidade. A publicação é produto de financiamento da União Europeia (UE), da Fundação para Ciência e Tecnologia de Portugal, do Ministério de Ciencia y Innovación da Espanha e da Marie Curie Actions, da UE.
O estudo é fruto de um longo histórico de parceria entre a PUCRS e a US, da Espanha, em especial da relação entre os dois professores, Augusto e Jesús. Desde 2017, Jesús participa de iniciativas do PPGCrim da PUCRS. Nesta cooperação internacional, o Augusto realizou missão de trabalho na Espanha, através do Capes-PrInt, onde encaminhou projetos, como este livro. O projeto contou também com o doutorando do PPGCCrim da PUCRS Eduardo Salles, que realizou cotutela entre as duas instituições.
No livro, o docente, em conjunto com 48 pesquisadores de diferentes nacionalidades, apresenta questões sobre a era atravessada digitalmente e os impactos relevantes nas dinâmicas humanas, principalmente em termos de violência e controle social.
As discussões avançam criticamente na reflexão tecnopolítica em temas como big data, datafied society, surveillance capitalism, solucionismo digital e inteligência artificial e direitos humanos na era digital, sobretudo nas nuances europeias e latino-americanas. De acordo com Augusto, uma crítica da violência neste viés deve apontar os efeitos redutores em nossas vidas colocados em favor de lógicas de controle, de violação de direitos e de produção e de violações éticas. Além disso, para o professor, vivemos em um modo de cultura monotecnológica, ou seja, na busca por uma máxima eficiência.
“A discussão a partir desse viés é fundamental, sobretudo porque se diferencia de um mero conformismo, de uma assimilação asséptica e acrítica deste estado de coisas digital. Para além de um tecnofobia, vivemos na busca por uma espécie de solução mágica aos nossos maiores dilemas políticos”, explica.