A música sacra ocidental está repleta de composições que marcaram a história. Desde o período medieval, com a monodia litúrgica do primeiro milênio, passando pela Ars Antiqua, Ars Nova, Renascimento, Barroco, Clássico e assim por diante nos séculos 19, 20, e 21. Tem seu lugar não somente dentro das igrejas, mas também nas salas de concertos.
Esse lado religioso da música se tornou uma parte importante do repertório das orquestras, dos coros e dos solistas do mundo todo. Aperte o cinto e se prepare para um percurso cheio de obras monumentais, mestres da música e uma força espiritual característica da música sacra, aflorando a sensibilidade e provocando profundas reflexões narradas pelo maestro da PUCRS Marcio Buzatto. Confira a playlist no Spotify ou no YouTube.
Composta em 1741, a obra é dividida em 51 movimentos, agrupados em três partes. O trecho mais conhecido é o Hallelujah, muito tocado em eventos. A “sinfonia”, a parte instrumental que funciona como uma abertura, sem texto, já incita uma reflexão sobre a vida de Jesus, o Messias, história amplamente conhecida. Nesta parte, dois momentos contrastantes podem ser observados facilmente: um primeiro com blocos de acordes ao estilo francês, e um segundo mostrando a facilidade com que Händel manipula a técnica do contraponto em música. Ao término desta introdução, o público percebe que uma história importante está iniciando, que uma jornada histórica será contada através da música que recém inicia.
Por volta de 1727 foi composta a Paixão segundo Mateus, que conta a história de vida, sofrimento e morte de Jesus na forma de um oratório. A música é muito utilizada durante a semana santa e se baseia no Evangelho de Mateus. Na playlist você encontra a parte inicial desta gigantesca obra, com o texto Kommt, ihr Töchter, helft mir klagen, que significa: “Venham, filhas, ajudem-me a lamentar… Vejam-no, por amor e clemência, no tronco da cruz sacrificado, sempre sereno, mesmo quando foi desprezado, suportou todos os nossos pecados, sem ti teríamos nos desesperado. Tem piedade de nós, oh Jesus!”.
Do Magníficat, composto pelo britânico John Rutter, o Esurientes, para soprano solo, coro e orquestra, é uma melodia delicada e confortante, de uma sensível leveza. A composição de 1990 baseada no Evangelho de Lucas (I, 46-55) conta o que aconteceu logo após o anúncio do Arcanjo Gabriel à Maria, que foi visitar Isabel, também grávida. Sendo recebida por Isabel, Maria respondeu: “Senhor, a minha alma engrandece. E meu espírito exulta a Deus, Meu Salvador. Porque olhou para a humildade de sua serva…”.
Voltando alguns séculos, visitamos o canto gregoriano ou cantochão, como é conhecido. Sua melodia está muito próxima da fala, da reza e, portanto, da explícita compreensão do texto. Dentre eles, está Salve Regina, a mais importante melodia dedicada à Maria, que traz em seu texto um pouco da expressão da piedade medieval: “Salve, Rainha, mãe de misericórdia. Vida, doçura, e esperança nossa, salve… Ó clemente, ó piedosa, ó doce Virgem Maria”.
Agora, imagine-se entrando numa grande catedral na Europa, no século 16, pouca luz, vitrais impressionantes, arquitetura imponente e você começa a ouvir uma combinação de vozes, daquelas que tem um poder hipnotizante, encantador. O compositor, neste contexto, trouxe ao mundo a obra em homenagem ao Papa Marcelo II, que governou a Igreja Católica por alguns dias somente, antes de falecer. Com esta composição Palestrina teria reorganizando a polifonia da época, dando mais clareza às palavras e resolvendo uma discussão sobre compositores que estariam prejudicando o entendimento dos textos. Desta peça histórica, Kyrie significa: “Senhor, tem piedade de nós”.
O imponente Réquiem estreou em 1874, no aniversário da morte de Alessandro Manzoni, poeta e romancista italiano admirado por Verdi. É uma obra vigorosa e cheia de contrastes que causa um grande impacto em quem a ouve pela primeira vez ao vivo. O estilo operístico do autor é percebido também nesta missa, com força orquestral a favor do texto. Sanctus já começa empolgante: com trompetes. O texto que significa: “Santo, Santo, Santo sois Vós. Senhor Deus dos exércitos… Hosana nas alturas”.
A obra é uma das partes de um Réquiem de 1791 não concluído pelo autor. Envolta em mistérios, a história desta composição desperta curiosidade até hoje, sendo retratada inclusive em filmes como Amadeus, ganhador do Oscar em 1985. A música toda é repleta de energia e densidade, provocando um misto de sensações e reflexões. Lacrimosa é uma das partes mais conhecidas desta Missa de Réquiem. Seu texto significa: “Dias de lágrimas, naqueles dias nos quais ressurgirá das cinzas um homem para ser julgado. Portanto, poupe-o, ó Deus. Ó, misericordioso, Senhor Jesus, Repouso eterno dá-lhes. Amém”.
De 1992, Mass para coro, piano e cordas, incluindo alguns elementos do jazz, dentre uma série de características modernas. Kyrie quebra um pouco a sequência da sonoridade das demais músicas desta playlist. Como se trata de um passeio pela música sacra, esta visita aos Estados Unidos traz um ambiente diferente e apresenta Dobrogosz a quem ainda não o conhecia. Novos ares, novas sonoridades.
O compositor argentino criou essa obra em 1964, em parceria com o Padre Jesús Gabriel Segade. Não demorou muito para a música circular o mundo em diversas igrejas e teatros. Com ritmos e instrumentos regionais da Argentina, além do coro e solista, e o texto é retirado da liturgia tradicional da Igreja Católica, desta vez recebendo a tradução adaptada para o espanhol. O trecho Credo, ou Creio em Deus pai todo poderoso, foi adaptado para um ritmo popular conhecido como chacarera trunca, característico da região de Santiago del Estero.
Foi estreada em 1824 e se tornou um dos grandes monumentos da música sacra na cultura ocidental, uma obra grande também em complexidade, ao lado da Missa em Sí Menor, de Bach. Para o fechamento da playlist de forma vibrante, acompanhe o imponente Gloria in excelsis Deo (Glória a Deus nas Alturas) e a habilidade composicional singular de Beethoven.
“A música é o vínculo que une a vida do espírito à vida dos sentidos. A melodia é a vida sensível da poesia”, Ludwig Van Beethoven.
Em tempos em que precisamos estar recolhidos, sugerimos um passeio pela música de concerto, passando por vários países e tendências. Músicas que nos transportam para um estado de contemplação, dirigindo nossa atenção aos detalhes e incitando reflexões subjetivas. Coloque seus fones, ou então ligue o som num volume em que você possa ouvir todos os detalhes, mesmo os mais sutis, e inicie agora um passeio cheio de descobertas e boas sensações:
Começamos com a suíte Os Planetas (1914-16), de Gustav Holst. Dentre todos os planetas, sugerimos iniciar com Júpiter, cheio de energia e com uma melodia simples e marcante logo nos primeiros minutos. Para quem tiver curiosidade, é uma peça excelente para ouvir e viajar pelo sistema solar sem sair de casa. Holst tem uma sonoridade que depois veio a ser muito utilizada em trilhas sonoras de filmes, então você poderá identificar como algo familiar, mesmo sem ter ouvido antes, pois compositores como John Williams e James Horner levaram uma sonoridade semelhante ao cinema na segunda metade do século XX. Vale a pena uma leitura na internet sobre este conjunto cheio de curiosidades.
A próxima parada é na obra Quadros de Uma Exposição (1874), de Modest Mussorgski. Originalmente escrita para piano, recebeu esta roupagem orquestral em 1922, por ninguém menos que Maurice Ravel, entrando e permanecendo no repertório das orquestras do mundo todo. A peça é, digamos, uma homenagem ao pintor Viktor Hartmann, com 10 quadros sonorizados deste artista, entremeados com um tema “Promenade”, ou um “Passeio”, levando o ouvinte literalmente a uma viagem pela exposição. A orquestração de Ravel é exuberante! Um bom exercício é ouvir primeiro a versão original para piano, e depois a versão orquestrada, comparando a cada movimento e apreciando as escolhas de Ravel. Excelente exercício de percepção.
O Concerto para Violino (1939), de Samuel Barber é de uma sonoridade tocante, sutil e intensa ao mesmo tempo. Barber esticou um pouco do romantismo do século XIX até o final do século XX, mesmo em meio a tantos outros movimentos artísticos diferentes que aconteceram durante sua vida. Talvez este não seja um concerto tão virtuosístico quanto outros. Isso denota que não foi uma preocupação do compositor em deixá-lo difícil de executar, o que neste caso é bom, deixando assim a atenção em passar a ideia musical sem desvios. Contudo, a rapidez do terceiro movimento parece ter sido uma maneira de compensar a falta de velocidade dos dois primeiros movimentos. Além do violino solo, observamos no segundo movimento um belíssimo e envolvente solo de oboé. Aliás, todos os temas desta peça são muito envolventes.
Seguimos o passeio pela Rapsódia sobre um tema de Paganini (1934), de Sergei Rachmaninoff. A obra completa é composta de 24 variações para piano e orquestra, mas aqui convidamos para uma escuta inicial da 18ª variação, a mais famosa. Trata-se do Andante Cantabile, em Ré bemol maior. Neste momento o piano assume completamente a posição de protagonista, transformando em sons um dos temas mais tocantes de toda história da música ocidental. Porém, o impacto desta 18ª variação deverá ser absorvido pelo ouvinte com toda sua intensidade somente se ouvirmos toda a peça desde a 1ª variação. Vale cada minuto e cada nota.
Voltando alguns séculos, não poderíamos deixar de revisitar Johann Sebastian Bach. Em nosso passeio consta o Concerto de Brandenburgo nº 5 (1721). A fluência das composições de Bach está aqui, o sistema de baixo contínuo e a velocidade das melodias funcionam como um imã para prender nossa atenção, parece nos hipnotizar. Neste concerto há que se notar a parte do cravo, instrumento de teclas pinçadas muito comum no período barroco. Temos a impressão de que ele literalmente ‘enlouquece’ e assume o protagonismo enquanto a orquestra o espera para retomarem juntos o primeiro tema.
Passando pela França, podemos sentir uma sonoridade diferente. Por vezes você pode pensar que está em um sonho. Três Danças para Orquestra (1932) é uma das poucas músicas para orquestra de Maurice Duruflé. Os franceses desenvolveram uma escola fantástica de orquestração principalmente no início do século XX (entenda-se aqui orquestração como a arte de distribuir a música entre os instrumentos da orquestra). Há pouco vimos isso com Ravel, em sua magnífica orquestração para Quadros de Uma Exposição. Efeitos complementares e estruturais, colocados intrinsecamente ao discurso musical procurando utilizar todos os instrumentos com igual importância: cordas, madeiras, metais e percussão.
Chegamos ao Brasil, com as Bachianas Brasileiras nº 4 (1930-41), de Heitor Villa Lobos. Inicialmente composta para piano, em 1942 ganhou uma super orquestração do próprio compositor. Como o título diz, a inspiração vem do alemão Bach, mais especificamente dos Concertos de Brandenburgo, mas também podemos considerar que Villa Lobos teve influência francesa em suas composições, pelo período que lá conviveu. São nove bachianas ao todo, desta vez com elementos brasileiros bem identificáveis, por isso recomendamos a audição completa da obra. Aqui ficamos com a Bachiana nº 4, que tem um início arrebatador com as cordas, e divide-se em quatro movimentos: Prelúdio/Introdução, Coral/Canto do Sertão, Ária/Cantiga e Dança/Miudinho. Após passarmos por Holst, Mussorgsky/Ravel, Rachmaninoff, Duruflé e Bach, é muito interessante ouvir elementos bem brasileiros se relacionando com elementos do mundo dentro da música de concerto.
Rodeo (1942), de Aaron Copland, foi composta originalmente para um ballet, tendo recebido logo uma versão para salas de concerto. A versão de concerto é divida em 4 momentos: Buckaroo Holyday, Corral Nocturne, Saturday Night Walz e Hoe-Down, os quais recomendamos ouvir na íntegra para uma boa apreciação. Porém com Hoe-Down, notamos fortemente a intenção de mostrar elementos nacionais, neste caso dos EUA, de forma muito divertida e de fácil assimilação. Aliás, na primeira metade do século XX, vários compositores ao redor do mundo sentiram esta necessidade de expressar elementos nacionais vindos do folclore e tradição popular, onde se enquadram Villa Lobos, Gershwin e Piazzola, por exemplo.
Nesta mesma linha de músicas mais leves, que tratam de elementos locais, vem Danzón nº2 (1994), de Arturo Márquez. Possui um título que por si só sugere ritmo, no caso ritmos mexicanos. A peça recentemente composta já rodou o mundo e faz parte do repertório de praticamente todas as orquestras. Muito divertida, com ritmo intenso, é uma excelente música para encerrar um concerto em alto astral e colocar o público a dançar, mesmo que sentado.
Chegando ao fim deste passeio, não poderíamos deixar de fora o aniversariante do ano, Ludwig van Beethoven. Ele estaria completando 250 anos em 2020, e pela qualidade e perpetuação de sua obra, merece as repetidas homenagens que está recebendo. A 9ª Sinfonia (1824) é um ponto alto na história da música de concerto, tendo sido a primeira sinfonia a levar um coral para o palco, o que impactou sobremaneira o público do início século XIX. Com o poema de Friedrich Schiller “An die Freude”, ou “Ode à Alegria”, Beethoven, já acometido por surdez, mostra um trabalho exuberante que há 250 anos vem lotando auditórios em busca da experiência transformadora que é ouvir a sua 9ª Sinfonia. O coral e os solistas entram somente a partir do quarto movimento, que se constitui num verdadeiro gran finale. Bem definem historiadores como sendo sua fase ‘transcendente’. Ouvir esta sinfonia completa ao menos uma vez na vida em bom volume, se possível ao vivo, é uma experiência realmente transformadora.
Este foi um pequeno passeio num mundo de composições excepcionais. Você conseguiu observar algo interessante durante a audição destas músicas? Você pensou sobre o mérito de cada um destes compositores em transformar notas escritas num papel nestas maravilhas sonoras? A música tem uma força incrível, que pode ser observada e sentida por ouvintes atentos e curiosos. Se algo neste percurso todo lhe fez se sentir bem, ou aprender algo, a realização será toda nossa. Muito obrigado por nos acompanhar neste passeio musical! Até breve!
Márcio Buzzato completou dois bacharelados em música pela UFRGS, um na área de Regência e outro em Composição Musical, ambos obtidos com Láurea Acadêmica. Foi professor de Regência e Canto Coral na UFRGS e na UFSM e, durante suas graduações, foi monitor de Contraponto Modal, Contraponto Tonal, Fuga, Teoria Musical, Regência e Canto Coral. Desde 2010, está à frente do Coral da PUCRS. Clique aqui para saber mais.