A jornalista, escritora e tradutora espanhola Pilar del Río dedica seu dia a dia à Fundação José Saramago e se diz uma militante das causas que ele defendia “a cada momento”. Casada com o escritor português de 1988 até sua morte, em 2010, relata, em entrevista exclusiva ao portal da PUCRS, sua percepção sobre “um ser tão complexo a ponto de escrever Ensaio sobre a Cegueira e não se deixar cegar pelos holofotes que lhe puseram pelo mundo afora”. Comenta ainda que ele foi a Estocolmo receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, e falou no avô analfabeto. “Era capaz de ser mexicano no México, brasileiro no Brasil e em Timor ou Moçambique sentir as necessidades das pessoas daqueles lugares.”
Na sexta-feira, dia 5, Pilar del Río esteve na PUCRS para falar sobre a vida, a obra e o legado de Saramago, ao lado do autor português José Luís Peixoto, com mediação do professor Paulo Ricardo Kralik, da Escola de Humanidades. A promoção foi da Universidade com a TAG – Experiências Literárias, que lançou o livro Autobiografia, escrito por Peixoto especialmente para comemorar os cinco anos da empresa. A obra será enviada para cerca de 30 mil assinantes de todo o País através do Kit Curadoria de julho. A atividade foi gratuita e aberta ao público.
Pilar traduziu mais de dez obras do marido para o espanhol. Além disso, escreveu os livros Los Andaluces e Sobre la traducción. Peixoto conheceu Saramago em 2001, quando recebeu o prêmio que leva o nome do renomado escritor pelo romance Nenhum Olhar. O próprio Saramago afirmou que Peixoto era “uma das revelações mais surpreendentes da literatura portuguesa. É um homem que sabe escrever e vai ser o continuador dos grandes escritores”.
Confira mais sobre o olhar de Pilar como tradutora, ativista e jornalista. Colaborou com perguntas o diretor do Instituto de Cultura da PUCRS, Ricardo Barberena.
O poeta e tradutor brasileiro Haroldo de Campos definia o processo de tradução como uma transcriação. Como avalia esse ofício? Qual foi o seu maior desafio nas obras traduzidas de José Saramago?
Passar para o espanhol a música do português. Traduzir é uma recriação na qual intervêm o respeito e o amor. Se não há empatia com o texto, o espírito do original pode se perder.
A senhora poderia comentar os possíveis significados do romance A viagem do elefante? Como se deu esse inusitado processo de um romance ser o ponto de partida para a construção do documentário José e Pilar?
O documentário e o romance se encontraram por casualidade. Uma vez terminada a rodagem, o diretor percebeu que tinha nas mãos um documento único: a vida de um escritor (e a sua quase morte) ao longo de vários anos. Miguel Gonçalves Mendes, o autor do filme, percebeu a importância que terminar esse romance tinha para José Saramago e soube colocar isso em evidência. E por esse motivo o documentário tem tanto valor. Para José Saramago, desde quando começou a escrevê-lo, o livro era uma reflexão sobre o sentido da vida.
Numa recente entrevista para o jornal português Expresso, a senhora afirmou que José Saramago foi uma maldição porque não gosta de ser considerada o apêndice de um grande homem. Como a senhora enfrenta “essa maldição”?
Foi uma brincadeira, uma resposta entre risos. José Saramago foi, sim, uma maldição para aqueles que detestam a pluralidade, a liberdade, a justiça social e a harmonia entre seres humanos. Para mim, que não estou nesse grupo, foi uma bênção que agradeço diariamente.
Como jornalista, como avalia a atuação da imprensa nos dias atuais?
Às vezes penso que a imprensa, os meios de comunicação são pornográficos, obscenos. Não porque coloquem os seres humanos nus em posições extravagantes, mas porque intervêm na sociedade a favor de seus interesses com uma suposta narrativa profissional e imparcial. Têm direito de o fazer, desde que partam com essa premissa editorial: estamos aqui para defender o sistema capitalista, não incomodem com outras propostas. Se assim for, tudo bem, estão em seu direito.
“José Saramago foi uma maldição para aqueles que detestam a pluralidade, a liberdade, a justiça social e a harmonia entre seres humanos. Para mim, que não estou nesse grupo, foi uma bênção que agradeço diariamente.”
No Brasil, existe um movimento importante de escritoras ativistas. A senhora identifica um fenômeno semelhante em Portugal?
Em Portugal, há escritoras – não me atrevo a colocá-las como parte de um grupo – que são conscientes dos valores humanos. Não sei se não é reducionista dizer que são “escritoras ativistas”. Acho que são escritoras e que o ativismo é um valor relacionado à cidadania, que pode ou não ser incorporado por elas. No entanto, há escritoras como Lídia Jorge, Inês Pedrosa, Dulce Maria Cardoso ou Ana Margarida Carvalho que defendem políticas que nos permitem avançar como sociedade. Ou como seres humanos, se não quisermos ser tão ambiciosos.
Qual o papel de uma fundação cultural em tempos efêmeros e de imediatismo e embrutecimento de relações humanas?
Promover o debate de ideias, a celebração de culturas, a necessidade da ética da responsabilidade.
O quanto do seu dia a dia é dedicado ao legado deixado por Saramago em relação à sua obra e a seu engajamento político na defesa dos direitos humanos?
O dia todo, a cada momento, mas de maneiras distintas. Não é um trabalho, mas uma militância. E quando se milita não se faz em horário de expediente, se faz o tempo todo.
A senhora disse em entrevista que se casou com um dos homens mais completos do século 20. Quem era o José Saramago que poucos conheciam?
Um ser tão complexo a ponto de escrever Ensaio sobre a Cegueira e não se deixar cegar pelos holofotes que lhe puseram pelo mundo afora. O homem que foi a Estocolmo e falou do avô analfabeto. Aquele capaz de ser mexicano no México, brasileiro no Brasil e em Timor ou Moçambique sentir as necessidades das pessoas daqueles lugares. Em Washington, não se sentia acuado pelas forças do império e em Paris falava na importância das culturas, declarando, isso sim, a sua admiração pela cultura francesa, sobre a qual trabalhou tantos anos traduzindo autores franceses ou a partir do francês, porque a esse idioma, naquela altura, chegavam todos.
O Prêmio Nobel, em 1998, mudou a vida de vocês? Em que medida?
Não mudou nada: o horário de se levantar continuou sendo o mesmo, os almoços seguiram iguais, os amigos eram os que sempre tinham sido. Um prêmio não muda a pessoa, poderia mudar algumas circunstâncias exteriores, como a visibilidade ou a repercussão de seus livros ou palavras. Em qualquer caso, José Saramago já era um valor consolidado internacionalmente. O Nobel só reconheceu isso, o escritor continuou trabalhando e sendo ele mesmo. Basta ver os livros que ele escreveu depois do prêmio e as declarações que fez.
A senhora já leu o novo livro de José Luís Peixoto? Qual a sua impressão? Faz parte do enredo?
Li e gostei. O enredo envolve dois escritores, um jovem e outro já consagrado. O resto é paisagem…