Foto: Daniel Kantek

Mistura poderia causar perda da identidade genética.  Foto: Daniel Kantek

A ação do homem vem trazendo diversas mudanças ao meio ambiente, e uma pesquisa realizada pelo Programa de Pós-Graduação em Zoologia da PUCRS identificou mais uma delas. De acordo com o estudo, o desmatamento da Mata Atlântica pode ser o grande responsável pela hibridação de raposas em São Paulo. O pesquisador Fabricio Garcez comprovou, durante seu Mestrado, o encontro e o cruzamento entre duas diferentes espécies: graxaim-do-campo (Lycalopex gymnocercus), típico da região Sul, e a raposinha-do-cerrado (L. vetulus), habitante do Cerrado. É a primeira zona híbrida de canídeos descoberta na América do Sul, fora do gênero Canis, do qual fazem parte, por exemplo, o lobo, o coiote e o cachorro doméstico.

Durante seu doutorado, Garcez seguiu com as análises a fim de descobrir há quanto tempo esse encontro está ocorrendo. “Esse é um processo que poderia nunca ocorrer se ainda houvesse a presença de Mata Atlântica ou, se ocorresse, levaria milhares de anos, e o desmatamento causado por atividades humanas está acelerando esse processo. É um exemplo mais concreto do grau de influência do ser humano na história natural dos animais”, explica. Para o orientador do estudo, professor Eduardo Eizirik, a descoberta demonstra “um problema grave de conservação”. De acordo com ele, é cedo para afirmar qual será o futuro das espécies, mas está entre as possibilidades a propagação do processo de hibridação ou a restrição desses indivíduos em uma zona estreita. Além disso, é possível que ocorra uma perda da identidade genética de ambas as espécies, ocasionada pela mistura. “Nesse último caso, estaríamos desfazendo algo que a evolução fez durante milhares de anos, que foi separar as espécies”, conta Eizirik. Garcez destaca ainda a preocupação com a raposinha-do-cerrado, existente apenas no Brasil. Afinal, o Cerrado brasileiro é um dos biomas mais ameaçados do mundo. Segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), apenas 20% do Cerrado está preservado em sua condição original. A raposa também é vítima constante de atropelamentos, predação por cães domésticos e doenças. A perda estimada nos últimos 15 anos é de 30% dessa população, o que deve se repetir nos próximos 15 anos, de acordo com dados do ICMBio. Por isso, a raposinha-do-cerrado foi classificada como vulnerável. “A hibridação pode ser mais um fator de ameaça”, acredita o doutorando.

Foto: Marina O.Favarini

Foto: Marina O.Favarini

Durante a segunda fase da pesquisa, já foi possível identificar uma segunda geração de animais híbridos entre as amostras coletadas em São Paulo, e nenhum animal da região analisado até o momento pode ser considerado puro de uma das espécies. Ainda não é possível afirmar que o encontro das espécies esteja ocorrendo apenas nesse Estado, pois há possibilidade de que o processo também ocorra em outros estados próximos. Garcez conta ainda que a hibridação aparenta ser assimétrica, ou seja, as duas espécies parecem não estar contribuindo para o processo com a mesma intensidade. “Até agora, todos os híbridos que encontramos têm uma proporção maior de L. vetulus (raposinha-do-cerrado) ”, explica.

Os pesquisadores acreditam ainda que o processo é recente, do final do século 20, mas essa informação poderá ser confirmada no decorrer do Doutorado de Garcez, que, a partir de dados genômicos – análise mais sofisticada do que a de DNA mitocondrial e de microssatélites utilizadas no Mestrado, irá verificar com mais precisão há quanto tempo esse processo está ocorrendo, se é realmente assimétrico, de que forma a seleção natural pode estar atuando e em quais outras regiões esse fenômeno ocorre. Outra parte do estudo investiga ainda a existência de hibridação do graxaim-do-campo com a raposa-cinzenta-argentina (L. griseus), na Argentina e na Bolívia.

Foto: Bruno Todeschini - Ascom/PUCRS

Foto: Bruno Todeschini – Ascom/PUCRS

O grande entusiasmo da professora Clarice Alho, da Faculdade de Biociências, pela área de genética fica evidente em poucos minutos de conversa. Dedicada ao tema há 30 anos, a pesquisadora coordena o Laboratório de Genética Humana e Molecular da PUCRS, com foco especial em genética forense, área em que é considerada referência no país. “O uso das informações de DNA para esse fim é o nosso principal objetivo. Dentro desse tema, temos diversos projetos”, aponta. O grupo de pesquisa que coordena tem vários estudos publicados na Forensic Science International, a mais importante publicação da área. Entre eles destaca-se a identificação de mutações nas porções do cromossomo 2 que são de interesse forense, divulgado em 2015.

A principal pesquisa trabalhada no momento envolve a identificação de marcadores para características externas visíveis, e conta com o fomento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Por meio do estudo, será possível identificar, através do DNA, características como a pigmentação de pele, cabelo e olhos, usando materiais genéticos para fins forenses criminais, civis ou históricos. O trabalho conta com a participação de mestrandos, doutorandos e pós-doutores do Programa de Pós-Graduação em Biologia Celular e Molecular, além de estudantes em estágio formal, em Iniciação Científica da Graduação e até do Ensino Médio (Iniciação Científica Júnior).

Para desenvolver esse e outros projetos, o laboratório mantém parcerias com a International Centre of Forensic Sciences da University of Florida, Forensic Chemistry Department da Florida International University, Instituto de Criminalística do Paraná, Universidade Federal do Paraná, Universidade Católica de Brasília e Instituto de Medicina Legal e Criminalística de São Paulo. “Temos aproximado pessoas para trabalhar conosco especialmente nesses fins”, salienta. Desde o ano passado, o espaço também abriga a divisão de Genética Forense para Investigação Criminal, uma parceria com a Polícia Federal do Rio Grande do Sul. É o primeiro laboratório do gênero na Polícia Federal fora de Brasília e possibilita análises de casos envolvendo vestígios biológicos, como fios de cabelo, ossadas ou sangue coletados nos locais de crimes.

Além da dedicação à pesquisa, Clarice também está presente na sala de aula, lecionando as cadeiras de Genética na Faculdade de Biociências. Para o futuro, um dos desejos é continuar unindo teoria à prática, possibilitando que as descobertas sejam usadas para a solução de problemas no dia a dia. “Não adianta descobrirmos uma nova forma de identificação de material genético se ela não for colocada em prática em benefício da sociedade”, conta. Outro plano é continuar trabalhando com o projeto Pai Presente, realizado pelo Ministério Público, em parceria com o Laboratório, que faz identificação de paternidade. “Em cerca de 30 dias, resolvemos a situação de uma criança, ajustando a vida e o futuro dela. É muito importante essa presença na sociedade, dando esse auxílio com as ferramentas que estão ao nosso alcance”, finaliza.