Pesquisa biográfica aborda memórias sobre a escravidão

Foto: Pexels

A pesquisa biográfica Memórias individuais e coletivas da escravidão e do comércio de escravos: uma comparação contrastiva de diferentes comunidades, gerações e agrupamentos em Gana e no Brasil, desenvolvida, no Brasil, pelo professor Hermílio Santos e pelas estudantes Raphaela Pereira Dellazeri e Giorgia Moreira, será financiada pela Deutsche Forschungsgemeinschaft (DFG), a principal agência alemã de fomento à pesquisa.  

Conheça o projeto de pesquisa biográfica 

O estudo é realizado utilizando métodos das sociologias do conhecimento e da figuração para reconstruir as interrelações entre diferentes práticas de memória, a individual e a coletiva. O objetivo é comparar a memória sobre a escravidão em diferentes regiões, gerações e agrupamentos em Gana e no Brasil. Para isso, serão realizadas entrevistas familiares (se possível, com várias gerações de uma mesma família), discussões em grupo e entrevistas temáticas ou etnográficas com visitantes e guias em espaços de memória. O projeto, que será realizado entre 2022 e 2025, conta com uma equipe de pesquisadores de diferentes países:  

No Brasil e em Gana, as memórias sobre a escravidão estão presentes tanto a nível individual quanto coletivo, com muitas pessoas conhecedoras do fato de que seus ancestrais foram escravizadores ou escravizados. No entanto, dentro de cada país, as atitudes em relação a essa história são muito diferentes e, por vezes, controversas. Contrastando essas narrativas, é possível examinar de perto essas diferenças e mostrar como elas se devem a diferentes trajetórias históricas e configurações sociais em mudança.  

Como recorte geográfico, são estudadas as cidades ganesas de Elmina e Cape Coast, de onde partiam os navios negreiros, e duas regiões do norte do país, onde pessoas foram capturadas e vendidas no mercado de escravos. Já no Brasil, o trabalho focará na região litorânea de Salvador, na Bahia, em que a maioria dos atuais habitantes são descendentes de ex-escravizados, e na região de Pelotas, onde a população descende, em sua maioria, de europeus.  

Como tudo começou  

Hermílio Santos

Professor Hermílio Santos/Foto: Bruno Todeschini – Ascom/PUCRS

O projeto aprovado para o financiamento da DFG teve origem em uma parceria entre o professor Hermílio (PUCRS) e a professora Gabriele (Universität Göttingen) em uma iniciativa de internacionalização do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, com financiamento da Fapergs que tem como objetivo a difusão na sociologia brasileira da abordagem reconstrutiva de pesquisa biográfica. Fazem parte dessa iniciativa, além do projeto que receberá o financiamento alemão, a pesquisa Herdeiras: Narrativas Biográficas de Três Gerações de Mulheres Pretas e a produção da série Herdeiras 

Leia também: Projeto Herdeiras: as consequências da exploração dos povos negros e indígenas 

Parceria Brasil e Alemanha

A PUCRS participa de diversos programas de internacionalização em cooperação com universidades alemãs. Inclusive, em parceria com a UFRGS, é sede do Centro de Estudos Europeus e AlemãesEm relação à Universität Göttingen, o acordo de cooperação é mantido desde 2014. Desde esse ano, a PUCRS tem recebido anualmente estudantes de pós-graduação em Ciências Sociais e encaminhado doutorandos para participar de atividades de treinamento no método de narrativas biográficas. Além disso, estudantes da graduação também tiveram a oportunidade de realizar mobilidade acadêmica com financiamento da Universidade alemã.  

Os pesquisadores do projeto agraciado com o financiamento da DFG também fazem parte dessa história. Hermílio já foi pesquisador visitante na instituição no exterior e Gabriele já esteve presente na PUCRS proferindo paletras, seminários e como professora visitante junto ao PPGCS. Ela já publicou duas obras pela Edipucrs, ambas com apresentação e revisão técnica da tradução realizadas por Hermílio. 

Saiba mais sobre internacionalização no site da PUCRS Internacional. 

Projeto Herdeiras: as consequências da exploração dos povos negros e indígenas

Mulheres indígenas brasileiras lutam contra a violência / Foto: ONU Brasil

Quem são e como vivem as mulheres brasileiras descendentes de povos historicamente explorados? A partir de narrativas biográficas, os projetos Herdeiras Negras e Herdeiras Indígenas contarão as histórias de três gerações de mulheres negras de regiões com economia originalmente escravagista e de mulheres indígenas de diferentes etnias após o contato com outras civilizações não-indígenas. 

Os estudos são liderados pelo professor Hermílio Santos, coordenador do Grupo de Pesquisa em Narrativas Biográficas do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS (PPGCS). Ambos foram contemplados pelo edital de financiamento da Fapergs/BPA-PUCRS e o estudo da herança da escravidão concorre a um edital da DFG, instituição alemã de fomento à pesquisa. 

O professor Steve William Tonah, do Departamento de Sociologia da University of Ghana, na África, abordará o panorama global, como a riqueza das culturas das nações africanas e a captura forçada de pessoas negras no período anterior à abolição. 

Uma das principais referências internacionais no desenvolvimento da análise reconstrutiva de narrativas biográficas também participará do estudo: a professora Gabriele Rosenthal, da Universität Göttingen, na Alemanha. 

Questões sociais e étnico-raciais de impacto global 

3º Seminário Juventudes Negras e Políticas Públicas 2017

Seminário Juventudes / Foto: Camila Cunha

O projeto Herdeiras Negras investigará a memória da escravidão e da economia canavieira, em Olinda (PE); da exploração de diamantes, em Diamantina (MG); e de charque, em Pelotas (RS). Queremos mostrar o ponto de vista dessas mulheres que experienciam as consequências do longo período de escravidão que aconteceu nessas regiões entre os séculos 14 e 19”, explica o pesquisador. 

Já o projeto Herdeiras Indígenas acompanhará mulheres das etnias Kaigangue e Xokleng e Bóe-Bororo (no Rio Grande do Sul, com contato iniciado há mais de 100 anos), Panará e Enawenê-nawê (com 40 anos de contato) e Yawalapiti e Kamayurá (em torno de 80 anos de contato), todas do estado de Mato Grosso. O objetivo do estudo é entender como mulheres de diferentes etnias interpretam e vivenciam o contato com a cultura não-indígena. 

Promovendo o acesso ao conteúdo científico 

Projeto Herdeiras: as consequências da exploração dos povos negros e indígenas

Foto: Reprodução

Os resultados das pesquisas, que ainda estão em desenvolvimento, serão transformados em uma série documental de acesso livre. A produção contará com a parceria de curadoras como Watatakalu Yawalapiti, uma das lideranças do movimento de mulheres indígenas no Xingu, em Mato Grosso. 

Estudantes de mestrado, doutorado e pós-doutorado do PPGCS, em sua maioria bolsistas, criaram duas páginas online com materiais próprios e curadoria de conteúdos audiovisuais e bibliográficos sobre os temas dos projetos. Confira: Herdeiras Indígenas e Herdeiras Negras. 

O grupo também recebe participantes de outras cidades e países, como o Padre Talis Pagot, doutorando da Pontificia Università Gregoriana, em Roma. 

Os povos indígenas contam suas histórias 

No dia 17 de junho, o professor Hermílio mediará o evento Povos indígenas por eles mesmos, com representantes de sete etnias indígenas. O bate-papo é uma oportunidade para que o grupo compartilhe experiências para além da visão acadêmica, propondo reflexões sobre os distintos contextos e experiências indígenas no País. 

O Dia da Pessoa Indígena 

Popularmente conhecido como o Dia do Índio, o dia 19 de abril marca a data do Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, que aconteceu em 1940, no México. O encontro teve o propósito de discutir pautas a respeito da situação dos povos indígenas nas Américas e reuniu diversas lideranças do movimento. 

Leita também: Estudo analisa impacto do contato com outras civilizações na população indígena 

Tese mostra como egressos da escravidão percebem sua situação na TV

Tese mostra como egressos da escravidão percebem sua situação na TV
Foto: Arquivo pessoal

Pelo menos 40% dos casos de trabalho escravo no Brasil são maranhenses. O município de Açailândia concentra o maior número de pessoas nessa situação. O local foi alvo de pesquisa para a tese da jornalista Flávia de Almeida Moura, professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), que participou do projeto de Doutorado Interinstitucional (Dinter) com a PUCRS. O trabalho, realizado em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, foi concluído em três anos por ter um estudo de campo avançado. Analisa como trabalhadores rurais egressos da escravidão se apropriam das representações do escravo na mídia utilizando o telejornalismo como recorte.

A proposta da tese de Flávia, orientada pela professora Juliana Tonin, foi entender como os egressos percebem a sua presença na mídia, por meio da seleção de sete reportagens exibidas na Globo, Record, SBT e Bandeirantes, entre 2009 e 2013. O exercício foi mudar o lugar de fala desses trabalhadores, colocando-os na posição de produtores das notícias.

O cuidado ético para não identificação foi o principal contribuinte para conseguir depoimentos tão ricos. “As visitas tiveram o apoio do Centro de Defesa, porque é um local de grande conflito de terras, com capangas, jagunços. Eles precisavam acreditar que eu era uma pesquisadora”. Para Flávia o maior ganho foi esse contato e poder repensar a produção midiática na construção do imaginário pessoal. “Temos de lembrar que não são personagens nas nossas matérias, são pessoas”.

De acordo com o relatório Perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil, publicado em 2011, pela Organização Internacional do Trabalho, quem foi submetido a essas condições no País, nos últimos anos, são predominantemente homens adultos, negros e com idade média de 31,4 anos. Ainda, pelo menos 79% já tinham ouvido falar sobre o tema na mídia, sendo que, pelo menos 44% por meio de TV e 35% pelo rádio.
A pesquisadora escolheu entrevistar produtores de carvão, trabalhadores de fazendas de gado, de monocultura da soja e de plantações de eucalipto. Em geral, filhos ou netos de produtores rurais que foram expulsos dos locais de origem por conta dos processos históricos. Em comum, eles têm a falta de escolaridade e qualificação profissional que agravam sua situação. Em período de intenso trabalho rural, recebiam as informações da mídia de forma indireta, através de parentes ou amigos.

Quando questionados, se se viam como escravos, a resposta inicial é negativa. A primeira ideia está ligada ao imaginário sobre escravidão no período do Brasil colonial. “A gente não vive acorrentado nessa escravidão atual, mas é pior que o escravo negro dos tempos antigo…”, relata um dos entrevistados.

A maioria demonstrou entender os mecanismos de subjugação, alegando fazer parte desse contexto por necessidade e não por falta de informação ou por ter sido enganada. A humilhação e o medo são fatores subjetivos encontrados nas suas falas. Fatores que vão além da falta de infraestrutura ou ainda da ausência de pagamentos de salários.

“Surpreendente foi notar que as condições físicas foram menos importantes que a subjugação”, conta Flávia. Os trabalhadores lembram que o conjunto de situações que levam a situação de trabalho escravo não é citado nas reportagens. “Para ele, as condições sub-humanas como espaço, higiene, moradia, são menos importantes do que a questão da dignidade e da honra”, enfatiza. A pesquisadora evidenciou que a violência simbólica, não caracterizada nas passagens televisivas, é destacada. “A coerção pelo gerente da fazenda, a figura do aliciador que usa da sua força são passagens pouco lembradas e só mesmo pessoas que passam por isso para abrir nossos olhos”, explica.
Leia mais na página 16 da Revista PUCRS nº 177 (novembro-dezembro/2015)