Pesquisa realizada pela PUCRS com associados do Sindicato dos Servidores de Nível Superior do Rio Grande do Sul (Sintergs) mostra que apenas 3% dos funcionários públicos com graduação são pretos. Entre os 366 participantes, 5,7% são pardos e 0,3%, indígenas. Brancos chegam a 91%. Os dados fazem parte de estudo realizado em 2020 e serviram de base para cartilha lançada pelo Sintergs em outubro.
A baixa representatividade de negros no serviço público, especialmente em cargos de nível superior, demonstra a dificuldade de acesso à educação de qualidade. E deve servir de reflexão neste dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra. Por isso a importância de questionar a desigualdade e assumir que há privilégios em ser branco. “Esse é o primeiro passo para a mudança”, pontua a diretora do Sintergs, Angela Antunes.
“Entender a necessidade das cotas, da dívida histórica do Brasil com os afrodescendentes e indígenas e desmitificar a meritocracia, como se todos tivessem acesso às mesmas condições, é fundamental”, avalia Angela. Conforme a dirigente, o Dia Nacional da Consciência Negra tem sua raiz em solo gaúcho, no Grupo Palmares, em Oliveira Silveira, Antonio Carlos Côrtes e outros militantes negros e negras. A diretora do sindicato faz um apelo: que o 20 de novembro conscientize também a branquitude.
Para Angelo Brandelli Costa, coordenador da pesquisa e professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS, o racismo estrutural segue grande no país e as discrepâncias raciais saltam os olhos quando deparados aos dados dessa amostra de acesso a cargos públicos. “Existe uma limitação de políticas de inclusão e a necessidade de adotar outras medidas”, analisa.
Josi Beatriz Viegas Cunha abriu caminhos para si pela educação, mas revela que não cresceu sozinha – teve a força de sua ancestralidade e o apoio de pai, mãe e irmãs. As guias no pescoço e o dread nos cabelos há 21 anos são marcas de Josi. Mais do que mudar paradigmas, ela diz que carrega suas referências como forma de assumir seu estilo e sua crença na religião afro-brasileira.
Formada em Engenharia Civil pela PUCRS como aluna destaque da turma de 1993, é servidora estadual há 20 anos. Começou sua trajetória na Secretaria de Educação e hoje atua na Secretaria de Obras. Desde que ingressou no serviço público, a profissional tem consciência de seu papel para ajudar a melhorar a vida das pessoas. “O posto de saúde vai para a comunidade preta, a escola estadual vai para a comunidade preta”, conta, motivada pelo trabalho que realiza.
Na carreira, os desafios são grandes. “Minha posição não é de inferioridade, mas estou atrás até de quem entrou agora. Vejo que colegas brancas que fizeram faculdade já chegam em patamar superior, mesmo eu ganhando financeiramente mais, elas têm mais acesso. Tive de ser melhor do que homem branco e que mulher branca, ser a melhor das melhores, pois, além de ser mulher, sou preta”, explica.
“Às vezes, olham pra mim e dizem que as cotas não são necessárias: se tu conseguiste, outros também conseguem. Mas um dos meus anjos, homem preto que conseguiu meu primeiro estágio, não se formou. Faltou suporte familiar e econômico. Meus pais abriram mão de conquistas para eu me formar, eu abri mão. Meu pilar era de madeira, não era de concreto. Não havia estrutura, por isso a necessidade de reparação.”
Leia também: 52% dos servidores de nível superior do RS já sofreram tentativa de corrupção
No Brasil, as pessoas negras tendem a ter os seus rendimentos do trabalho 17% menores do que em comparação aos brancos devido aos efeitos da própria classificação racial, que se fazem sentir de modo direto (na definição salarial) e indireto (via escolaridade e alocação ocupacional). Estas são algumas das conclusões apontadas pelo estudo que objetiva identificar, com maior precisão, os fatores responsáveis pela desigualdade de renda entre brancos e negros no mercado de trabalho brasileiro. A pesquisa foi desenvolvida pela PUCRS, em parceria com a Rede de Observatórios da Dívida Social na América Latina (RedODSAL). As informações completas podem ser encontradas neste link. O levantamento é alusivo ao Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado no dia 20 de novembro.
Para realizar as análises, os dados foram extraídos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-IBGE), com foco nas informações do bloco de mobilidade social coletadas em 2014. Foram relacionadas pessoas com idades entre 20 a 64 anos e que estavam inseridas no mercado de trabalho.
Em estudo divulgado recentemente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constatava que, ainda em 2018, o rendimento do trabalho de brancos era 73,9% superior ao de negros (pretos e pardos). Ainda existe uma grande desigualdade racial no mercado de trabalho brasileiro, mas há um longo debate acerca dos fatores explicativos da distância salarial entre brancos e negros no país. Por esta razão, o estudo buscou separar, de modo mais detalhado, os fatores que explicam as desigualdades entre brancos e negros, incluindo os diferenciais de origem social e, também, a própria classificação racial, entre outros fatores. Para isso, foram selecionadas informações a respeito de diferentes etapas da vida dos indivíduos. Os resultados indicam que os efeitos da classificação racial são fortes e que se fazem sentir ao longo de toda a trajetória dos indivíduos, resultando em rendimentos 17% menores no mercado de trabalho.
Para o coordenador da pesquisa e professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUCRS, André Salata, o enfrentamento das desigualdades raciais deve ser pensado de modo mais abrangente no Brasil. “É preciso combater os efeitos da classificação racial sobre os diferenciais de escolaridade alcançada, pois esse é um dos principais caminhos a partir do qual os efeitos da cor se fazem sentir nos rendimentos, correspondendo a mais de 40% dos efeitos totais de raça”, aponta.
Ainda, segundo Salata, ao mesmo tempo, as diferenças de origem social ainda respondem por aproximadamente 30% da desigualdade racial total, portanto enfrentar as disparidades de origem social entre brancos e negros é também essencial. “Não devemos esquecer das desigualdades que aparecem no momento da definição salarial. O nosso mercado de trabalho pune os indivíduos negros com uma redução de mais de 7% de seus salários, mesmo quando comparados com indivíduos brancos com a mesma escolaridade, experiência, ocupação e origem social”, complementa.
Um dos primeiros objetivos do estudo foi comparar os efeitos da origem social – recursos econômicos e culturais da família da origem – com os efeitos da própria classificação racial sobre os rendimentos do trabalho. A fim de tornar alguns dos resultados mais inteligíveis, foram exemplificados quatro casos fictícios de indivíduos: um branco com origem social típica dos brancos; um negro com origem social típica dos negros; um branco com origem social típica dos negros; e, finalmente, um negro com origem social típica dos brancos.
A partir de simulações estatísticas, chegou-se aos rendimentos esperados para cada um daqueles quatro indivíduos fictícios. Conforme destaca a tabela:
No caso do indivíduo branco com origem social típica dos brancos, o modelo estatístico utilizado prevê uma renda esperada de R$ 1.711,16, muito superior a de indivíduo negro com origem social característica dos negros, cujos rendimentos esperados seriam de R$ 1.282,95. Esta desvantagem de 25% se deveria tanto à família de origem quanto à classificação racial dos indivíduos.
Em um caso no qual um indivíduo negro fosse proveniente de uma família com perfil socioeconômico como a média dos brancos, a sua renda esperada subiria para R$ 1.421,18, reduzindo a sua desvantagem para 17% em relação ao indivíduo branco. Portanto, a sua categoria racial é responsável por uma ampla desvantagem mesmo quando se trata de indivíduos com origens sociais semelhantes.
Ao mesmo tempo, é importante perceber que entre os dois indivíduos negros, com origens sociais distintas, há uma diferença relevante de rendimentos. A desvantagem do indivíduo negro com origem social típica dos brancos é aproximadamente 30% menor do que a de um indivíduo também negro com origem social típica dos negros. Isso, segundo os pesquisadores deste levantamento, demonstra o importante efeito dos diferenciais de origem que vêm se reproduzindo ao longo de nossa história sobre as desigualdades raciais.
Uma vez demonstrado que a própria classificação racial possui efeitos significativos sobre os rendimentos dos indivíduos, os pesquisadores quiseram entender em quais momentos da trajetória dos indivíduos estes efeitos estariam mais presentes. No estudo, procuraram considerar os efeitos de raça em três momentos-chave da trajetória dos indivíduos: na escolaridade alcançada, na alocação dentro da hierarquia ocupacional entre indivíduos com a mesma escolaridade e na definição salarial entre indivíduos com a mesma escolaridade e em ocupações similares.
Segundo Salata, os resultados indicam que 41,3% dos efeitos de raça sobre os rendimentos passam pela escolaridade. “Mesmo quando comparamos indivíduos com características semelhantes, os negros tendem a alcançar menor escolaridade, o que acarreta em rendimentos menores no mercado de trabalho. É preciso entender melhor os mecanismos intraescolares, que levam negros a apresentarem pior desempenho do que brancos. O combate às desigualdades raciais não pode se dar apenas no mercado de trabalho”, comenta.
Ao mesmo tempo, 41,6% dos efeitos da classificação racial ocorrem no momento da definição salarial, ou seja, a discriminação no próprio mercado de trabalho é também um importante fator na reprodução das desigualdades raciais. “É necessário ter uma visão mais abrangente no combate às desigualdades raciais. Elas começam na própria origem social, passam pela escola e se reforçam no mercado de trabalho. Como resultado, mais de 130 anos após a abolição da escravidão, ainda convivemos com uma sociedade onde a desigualdade racial é gigantesca”, ressalva o professor da PUCRS.