Por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da Escola de Direito da PUCRS
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública desempenha um papel crucial na construção de indicadores de segurança pública no Brasil, proporcionando uma visão abrangente e detalhada da situação da criminalidade e das políticas de segurança pública em todo o país. Desde sua primeira edição, o anuário tem sido uma fonte vital de dados, análise e reflexão crítica para formuladores de políticas, pesquisadores, sociedade civil e gestores públicos.
O histórico da publicação do Anuário remonta a 2007, quando o Fórum Brasileiro de Segurança Pública decidiu criar uma ferramenta que unisse dados estatísticos e análises qualitativas para fornecer um retrato fiel e abrangente da violência e da criminalidade no Brasil. Desde então, a publicação anual tem se tornado uma referência essencial, ganhando cada vez mais importância à medida que a sociedade e os governos reconhecem a necessidade de políticas baseadas em evidências para enfrentar a complexidade da violência e da criminalidade.
A importância do Anuário reside na sua capacidade de sistematizar dados de diversas fontes, como secretarias de segurança pública estaduais, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, entre outros. Essa sistematização permite a criação de indicadores robustos que não só refletem a realidade nacional, mas também permitem comparações entre estados e regiões.
Além disso, o Anuário contribui significativamente para a transparência e a accountability no setor de segurança pública. Ao fornecer dados atualizados e de fácil acesso, com séries históricas que apontam tendências, a publicação possibilita que a sociedade civil, a mídia e os próprios gestores públicos possam monitorar a efetividade das políticas públicas implementadas, bem como identificar lacunas e ineficiências que necessitam ser corrigidas.
O Anuário também se destaca por incluir análises de especialistas sobre cada dimensão dos dados apresentados que vão além das estatísticas tradicionais, incorporando discussões sobre direitos humanos, desigualdades sociais, racismo estrutural e outras questões fundamentais para a compreensão da segurança pública em uma sociedade complexa e desigual como a brasileira.
A produção do Anuário Brasileiro de Segurança Pública é uma tarefa desafiadora em um país como o Brasil, historicamente marcado pela falta de transparência e pela opacidade dos dados relacionados à criminalidade e à segurança pública. A construção de indicadores confiáveis e consistentes esbarra frequentemente em entraves como a resistência institucional à divulgação de informações, a inconsistência nos registros e a ausência de padronização nos métodos de coleta de dados entre os diferentes estados. Esses desafios são amplificados pela falta de uma cultura de transparência em muitas administrações públicas, que, por vezes, preferem manter um controle rigoroso sobre a divulgação dos dados de segurança pública para evitar críticas ou escrutínio externo.
Essa dificuldade em produzir e manter um instrumento como o Anuário reflete-se em várias situações em que governos estaduais romperam relações com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Essas rupturas são, em grande parte, motivadas pela incapacidade ou relutância desses governos em lidar com dados que expõem deficiências em suas políticas de segurança pública, como o aumento da violência policial, a superlotação carcerária ou o crescimento dos índices de criminalidade.
Em vez de utilizarem o Anuário como uma ferramenta para diagnosticar problemas e ajustar suas estratégias, muitos governos optam por criticar ou deslegitimar os dados apresentados, evitando enfrentar as questões estruturais que os indicadores revelam.
A viabilização do Anuário só se tornou possível em grande escala após a promulgação da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), que estabeleceu um marco legal para a transparência e obrigou os estados e municípios a fornecerem dados públicos, incluindo aqueles relacionados à segurança pública.
Essa legislação representou um avanço significativo para a transparência no Brasil, pois impôs obrigações claras para a divulgação de informações e garantiu à sociedade civil e aos pesquisadores o direito de acesso a dados anteriormente restritos. A Lei de Acesso à Informação foi crucial para que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública pudesse compilar, analisar e publicar os dados de maneira consistente e independente.
Entretanto, a aplicação da Lei de Acesso à Informação nem sempre é homogênea. Em alguns estados, ainda há resistência em fornecer informações completas ou atualizadas, ou os dados são apresentados de maneira fragmentada, dificultando uma análise aprofundada. Essa resistência é frequentemente alimentada por uma cultura política que teme as repercussões de tornar públicos dados sensíveis. Além disso, a falta de investimentos em tecnologia e em recursos humanos capacitados para a coleta e análise de dados também limita a qualidade das informações disponíveis.
A criação e manutenção do Anuário, portanto, não é apenas um esforço técnico, mas um ato político de afirmação da transparência e da accountability. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública tem desempenhado um papel essencial ao insistir na importância dos dados para a construção de políticas públicas eficazes e fundamentadas. No entanto, para que o Anuário continue a evoluir e a contribuir para o debate sobre segurança pública no Brasil, é fundamental que haja um compromisso contínuo com a transparência, o que inclui não apenas a disponibilização de dados, mas também a promoção de uma cultura de responsabilização e de melhoria contínua das práticas de gestão da segurança pública.
A resistência de alguns governos em fornecer dados completos e de qualidade reflete a necessidade de um movimento mais amplo pela transparência e pela responsabilização pública, elementos essenciais para o fortalecimento da democracia no Brasil.
A cobertura jornalística dos dados do Anuário permite que informações detalhadas sobre violência e criminalidade cheguem a um público amplo, contribuindo para uma maior conscientização sobre os problemas enfrentados em diferentes regiões do país. Essa visibilidade midiática tem um efeito multiplicador, ao levar os dados para além dos círculos acadêmicos e de políticas públicas, engajando a sociedade civil e ampliando o entendimento das questões de segurança pública. A análise dos dados do Anuário pela mídia também pressiona gestores públicos e políticos a responderem de maneira mais transparente e a justificarem suas ações e políticas, estimulando um ciclo virtuoso de responsabilização e melhoria das práticas.
Além disso, o Anuário possibilita a realização de análises consistentes com rigor científico sobre as séries históricas apresentadas. Ao fornecer dados de vários anos consecutivos, o Anuário permite identificar tendências, padrões de violência e criminalidade e a eficácia (ou ineficácia) das políticas de segurança pública ao longo do tempo. Essa possibilidade de análise longitudinal é essencial para desenvolver uma compreensão aprofundada e baseada em evidências sobre o que funciona ou não em termos de políticas públicas. Pesquisadores, acadêmicos e formuladores de políticas têm, portanto, à sua disposição uma base de dados confiável e abrangente para conduzir estudos que contribuam para o desenvolvimento de estratégias mais eficazes de enfrentamento à violência e ao crime.
Dados do ano de 2023 publicados pelo 18º Anuário
O 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela um cenário multifacetado da segurança pública no Brasil em 2023. A taxa de homicídios manteve-se elevada, especialmente devido ao uso de armas de fogo, responsáveis por 73,6% dos casos. No entanto, entre 2017 e 2023, houve uma redução significativa de 27,7% nas mortes violentas intencionais (MVI), abrangendo homicídios dolosos, feminicídios, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte, mortes de policiais e mortes decorrentes de intervenção policial. Por outro lado, a letalidade policial aumentou 23,4% no mesmo período, passando a representar 13,8% do total de MVI em 2023 .
A violência policial continua sendo um problema grave, com destaque para municípios como Jequié, na Bahia, com 46,6 mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP) a cada 100 mil habitantes, Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, com 42,4 MDIP por 100 mil habitantes, e Macapá, capital do Amapá, com 29,1 MDIP por 100 mil habitantes, enquanto que a taxa média nacional é de 3,1 MDIP por 100 mil habitantes. O estado com maior letalidade policial foi o Amapá, com 23,6 MDIP por 100 mil habitantes, seguido da Bahia, com 12 por 100 mil, e de Sergipe, com 10,4 por 100 mil.
Em 2023, houve uma queda de 18,1% na taxa de policiais civis e militares vítimas de CVLIs (Crimes Violentos Letais e Intencionais) em comparação com o ano anterior no Brasil, enquanto a taxa de suicídios de policiais civis e militares da ativa aumentou 26,2% no mesmo período. Focando na Polícia Militar, o número de suicídios superou, em 2023, o total de registros de PMs mortos em confronto, tanto em serviço quanto fora dele. Foram registrados 110 suicídios, em contraste com 46 casos de PMs mortos em confronto em serviço e 61 mortos em confronto ou por lesão não natural fora de serviço, totalizando 107 óbitos.
Ainda conforme os dados do Anuário, o número de registros ativos de armas de fogo no Brasil aumentou significativamente em 2023, refletindo uma tendência de crescimento no armamento da população. Esse aumento no número de armas em circulação está diretamente relacionado ao crescimento da violência no país, especialmente no que diz respeito a crimes cometidos com uso de armas de fogo. Notícias recentes apontam a participação de Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs) no crime organizado, ampliando o acesso a armas de fogo para grupos criminosos através da compra de armamento legalmente autorizado. O crescimento no acesso a armas de fogo eleva o risco de conflitos armados e homicídios, além de dificultar o trabalho das forças de segurança no controle da criminalidade.
A violência contra a mulher também é alarmante, com 3.930 homicídios de mulheres e mais de 200 mil casos de agressões no contexto doméstico registrados em 2023. Foram contabilizados pelo menos 199 estupros diários e 848.036 chamadas para o 190 relacionadas à violência contra a mulher, evidenciando uma crise contínua de violência de gênero no país. O feminicídio, especificamente, atingiu seu maior número desde a tipificação do crime em 2015, com 1.467 casos registrados. As maiores taxas de feminicídio foram encontradas em Rondônia, Mato Grosso, Acre e Tocantins, enquanto os estados com as menores taxas foram Ceará, São Paulo, Alagoas e Amapá .
O 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública destaca um aumento expressivo nos furtos e roubos de celulares, assim como nos casos de estelionato, refletindo uma mudança nas dinâmicas criminais no Brasil. Esses crimes, frequentemente associados ao avanço da tecnologia e ao aumento da conectividade digital, impactam diretamente a sensação de insegurança da população. Em 2023, houve um crescimento de 8,4% nos furtos e de 10,5% nos roubos de celulares em comparação a 2022. Esse tipo de criminalidade tem se tornado cada vez mais comum, alimentado pelo alto valor de revenda dos aparelhos no mercado paralelo e pela facilidade de execução. Além disso, o anuário ressalta que o aumento dos estelionatos, especialmente os cometidos por meio eletrônico, contribui significativamente para a percepção de vulnerabilidade e medo entre os cidadãos, evidenciando a necessidade de políticas públicas mais eficazes e focadas na prevenção e no combate a esses tipos de crimes.
Com relação ao sistema prisional, dados do Anuário mostram que o Brasil registrou um total de aproximadamente 852 mil pessoas encarceradas em 2023, incluindo presos em regime fechado, semiaberto, e aqueles em prisão domiciliar monitorada eletronicamente, que correspondem a 75,5% do total. O restante, que corresponde a presos provisórios, representa 24,5% do total.
Em termos de taxa de encarceramento, o Brasil apresenta uma média nacional de aproximadamente 407 presos por 100 mil habitantes. No entanto, essa taxa varia significativamente entre os estados. Os cinco estados brasileiros que, em 2023, mais encarceraram, levando em conta a taxa de presos a cada 100 mil habitantes, foram o Distrito Federal, com taxa de 1.011,8 por 100 mil; o Acre, com taxa de 972 por 100 mil; Rondônia, com taxa de 915,6 por 100 mil; o Paraná, com taxa de 828 por 100 mil e Roraima, com taxa de 759,4 por 100 mil. Segundo os dados do Anuário, os estados com maior déficit de vagas são o Paraná (49.128), São Paulo (36.948) e Pernambuco (26.738).
Por outro lado, algumas iniciativas em relação ao uso de alternativas penais, como medidas cautelares diversas da prisão, penas restritivas de direitos, e programas de monitoramento eletrônico, têm produzido resultados. Minas Gerais, por exemplo, destaca-se pelo uso relativamente maior de medidas alternativas, buscando reduzir a pressão sobre o sistema carcerário. O estado tem investido em programas de reintegração social e em práticas restaurativas, que buscam proporcionar alternativas ao encarceramento, especialmente para crimes de menor gravidade. A adoção de medidas como a suspensão condicional do processo, a suspensão condicional da pena, o monitoramento eletrônico, e os programas de justiça restaurativa refletem uma tentativa de repensar o uso da prisão como a principal resposta à criminalidade.
No entanto, a aplicação das alternativas penais ainda enfrenta desafios consideráveis. O anuário destaca a resistência cultural e institucional em muitos estados, onde persiste uma visão punitivista que privilegia o encarceramento em detrimento de alternativas mais eficazes para crimes não violentos. Além disso, há uma falta de infraestrutura adequada e de programas de acompanhamento para garantir a efetividade dessas medidas alternativas.
A análise dos dados do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública evidencia os múltiplos desafios que o Brasil enfrenta na área de segurança pública. A fragilidade das políticas de segurança se destaca pela incapacidade de lidar de forma eficaz com o crescimento do crime organizado no país. A falta de um compromisso claro e consistente de governos de diferentes posições no espectro político agrava esse cenário. Muitas vezes, esses governos adotam um discurso negacionista em relação aos dados, além de improvisar e recorrer ao populismo penal como resposta à ineficiência das políticas de segurança, ao invés de implementar estratégias baseadas em evidências.
Por outro lado, o sucesso de alguns governos estaduais na redução da violência mostra que é possível alcançar resultados positivos quando as políticas de segurança são baseadas em evidências e na integração eficaz entre as polícias e diferentes níveis de governo. Esses estados demonstram que uma abordagem coordenada e colaborativa pode ser eficaz no combate à criminalidade. Além disso, as políticas municipais de prevenção à violência têm se tornado cada vez mais relevantes, com municípios adotando iniciativas que abordam as causas subjacentes da violência, contribuindo para uma segurança pública mais abrangente e preventiva.
Ademais, há uma necessidade urgente de reforçar a implementação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que visa a coordenação de ações entre os governos federal e estaduais. Esse sistema pode proporcionar uma resposta mais organizada e coesa às questões de segurança. Por fim, é fundamental assegurar que as regras do Estado Democrático de Direito sejam mantidas e respeitadas, garantindo que a responsabilização criminal dos autores de delitos seja conduzida de forma justa e eficiente, sem abrir mão dos direitos e garantias fundamentais. Este compromisso com a legalidade é essencial para construir uma sociedade mais segura e justa, assegurando a igualdade de tratamento perante a lei, na perspectiva da consolidação da democracia e da redução da violência e da criminalidade.
*Artigo publicado originalmente no Jornal GGN escrito pelo professor da Escola de Direito da PUCRS Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. O docente é é sociólogo, associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, membro do Comitê Gestor do INCT-InEAC, e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.
Guilherme Schoeninger é advogado e mestrando em Direito na PUCRS. / Foto: Matheus Gomes
No último dia 6 de junho, homenageamos um educador e a sua obra de amor. Marcelino Champagnat foi descrito pelo Papa João Paulo II como exemplo para sacerdotes, pais e educadores, “ajudando-os a ter plena esperança nos jovens, a amá-los com um amor total que favoreça uma verdadeira formação humana, moral e espiritual”.
O educador é Champagnat, um jovem simples de uma família modesta em uma comunidade humilde. No contexto da Revolução Francesa, ele identifica um problema, assume um compromisso e sonha com uma obra. Diante da precariedade educacional daquele tempo, dá ouvidos à sua vocação e se propõe à missão de educar e de evangelizar. Superando dificuldades, sendo uma presença significativa, em um gesto de audácia, realizado em espírito de família, Marcelino funda o Instituto dos Irmãos Maristas. Quando lança a semente marista naquele solo dificultoso, não tem condições de imaginar os abundantes frutos da frondosa árvore que estava por vir.
A obra marista resplandece e transforma. Resplandece porque brilha em toda a sociedade. São muitas e são excelentes as suas expressões. A educação inspirada na Boa Mãe está presente nos colégios, nas unidades sociais, na PUCRS, no Hospital São Lucas, para ficarmos apenas com alguns dos exemplos mais próximos. Ao mesmo tempo, transforma porque dá nova forma a todos aqueles que a vivenciam, beneficiando milhares de crianças, jovens e adultos. Não se trata de uma obra apenas grandiosa, o que já seria muito, mas, sim, de uma ação instituída, mantida e continuada em razão de um sentimento. Como nos ensina o nosso Santo e Fundador, a educação é uma obra de amor.
Nesta data de hoje, portanto, reconheçamos a benção de sermos os felizes herdeiros da obra marista e assumamos o compromisso de dar continuidade à essa missão. Que São Marcelino Champagnat continue a abençoar a presença marista na sociedade e que todas as expressões do Instituto dos Irmãos Maristas prossigam no cumprimento da sua elevada missão.
Guilherme Schoeninger Advogado e mestrando em Direito na PUCRS
Alexander Goulart é jornalista, licenciado em Ciências Sociais, doutor em Comunicação (PUCRS) e Chefe do Gabinete da Reitoria da PUCRS
O poeta gaúcho Carlos Nejar diz que “o ser só morre quando já morreram todas as suas palavras”. Talvez, por isso, alguns professores permaneçam sempre presentes em nossas lembranças, não importando quanto tempo já tenha se passado desde a última aula. Há educadores que marcam profundamente seus alunos: seres que nunca morrem, ganham vida a cada história que contamos e recontamos “do tempo da escola”, da universidade, de uma circunstância privilegiada em que um mestre tenha nos alcançado a mente e o coração.
O momento feliz, em educação, acontece quando professores e estudantes se encontram. Quando carregado de sentido para ambos, esse instante privilegiado se transforma em um momento feliz. Corações no mesmo compasso, mentes conectadas, vidas entrelaçadas pela experiência do compartilhamento de ideias e sensações. O saber se conjuga com o sabor e a sabedoria tem campo aberto para ser cultivada.
É o sublime encontro humano entre professor e estudante que dá sentido aos dois ofícios: de educador e educando. Encontro feliz, carregado de intencionalidades, de desejo, curiosidade e confiança. Nas palavras de Rubem Alves, juntam-se as caixas de ferramentas e de brinquedos; há tempo para o saber aplicado (útil) e aquele voltado para o prazer. Ambas as formas de conhecimento são válidas e necessárias. O professor apaixonado por seu ofício e feliz na vocação não abre mão do prazer dos conhecimentos inúteis e dos conteúdos aplicados.
Ele desenvolve em seus alunos competências nas múltiplas dimensões do saber e do sabor. Num tempo em que tanto se pergunta “para que serve isso?”, o professor-educador tem a coragem de responder: “não serve para nada”. É justamente essa inutilidade que faz toda a diferença para o gostar de aprender e de ensinar, pois, em educação, saber e sabor andam juntos, independentemente da ordem em que apareçam. Nessa frágil liberdade de encaixe e desencaixe reside a felicidade do encontro entre professor e estudante, cada qual tecendo o seu jeito de aprender a ser feliz.
A disseminação do medo encontra um ambiente fértil nas plataformas de mídia social/ Foto: Soumil Kumar/Pexels
Espaços costumeiramente lotados de crianças e jovens estão atipicamente esvaziados nas últimas semanas por medo de supostos ataques armados em escolas e universidades. Assistimos a um crescente efeito de paralisação social e pânico generalizado diante da disseminação massiva do medo.
O medo sempre foi a grande arma do terrorismo em diferentes circunstâncias históricas e momentos midiáticos. Qual é a dinâmica que sustenta as iniciativas de ataque? Com uma força reduzida e condições objetivas precárias, quem ataca conta com a reação do alvo para obter sucesso.
Explico melhor: um jovem armado que adentra uma escola solitariamente, por exemplo, teria pouquíssimas condições objetivas de ter êxito. Caso o alvo reagisse apenas racionalmente, ele certamente seria interceptado e o dano mitigado.
Entretanto, quem ataca conta com o pânico e o despreparo de uma reação completamente emocional das vítimas que são surpreendidas por um inédito absurdo que não encontra referência anterior para saber como reagir adequadamente. Assim acontece tanto em um ataque isolado em uma cidade de Santa Catarina como em uma grande capital de países do hemisfério norte quando são vítimas de grupos organizados ou de lobos solitários com distintas motivações para o ataque.
No contexto que assistimos nas últimas semanas no Brasil há um agravante que caracteriza o comportamento social contemporâneo. As construções do medo encontram um superaliado nas plataformas de mídia social. Em diferentes épocas, diferentes mídias causaram o mesmo efeito. Há um episódio ocorrido nos Estados Unidos em 1938, quando uma transmissão de radioteatro realizada por Orson Welles, interpretando trechos do livro A Guerra dos Mundos foi apresentado como um episódio de uma série de Halloween, na Rádio CBS. Parte significativa da população acreditou na invasão de marcianos interpretada por Welles e espalhou-se o pânico e a confusão generalizada.
Hoje, a promoção contagiante do medo acontece em plataformas como TikTok, Twitter e, especialmente, nos grupos de comunicadores instantâneos como o WhatsApp. No caso das plataformas das Big Techs que estão por trás das mídias sociais, há um grande negócio sendo sustentado pelos algoritmos que promovem esses conteúdos e têm ganhos diretos com a viralização do medo. Um tema árduo que governos e sociedade precisam enfrentar com rigor e celeridade, afinal, a comunicação gerenciada pelos algoritmos nas mídias sociais não é nem livre, nem democrática. É um negócio com fins lucrativos que usa os conteúdos dos indivíduos como matéria-prima e produto.
Trata-se de uma verdadeira pandemia de problemas de saúde mental sendo gerada pela lógica dos algoritmos que adoece com mais intensidade a parte sensível da nossa sociedade: crianças, adolescentes e pessoas emocionalmente frágeis. O medo e a vertigem se instalam de uma forma tão consistente que passam a definir reações e comportamentos criando a realidade de caos.
O que vemos hoje? Famílias e escolas em guerra de responsabilidade, estudantes e universidades se enfrentando por medidas concretas e impossíveis que façam desaparecer o medo, expressões de raiva que atendam a necessidade emocional de construir a potência para enfrentar os ataques, enfim, o caos instalado. Ainda, um sem-fim de conteúdos falsos de baixíssima qualidade sendo compartilhado atendendo exatamente o que buscam os “frágeis terroristas”. Com esse comportamento, nos tornamos os grandes divulgadores, colaboradores e viabilizadores dos ataques bem-sucedidos.
Quem ganha com o caos? Os grupos e pessoas que estão promovendo os ataques. Desestabilizar os eventuais alvos, desorganizar a reação e esgarçar o tecido social a partir da desunião dos cidadãos já é um resultado concreto, afinal, representa ganho de atenção e de poder do terrorismo sobre a sociedade que se fragiliza pelo medo e abandona sua capacidade de reagir.
No horizonte das esperanças possíveis, há uma pista concreta para compreender como o medo assume esse lugar tão significativo na sociedade, especialmente no caso brasileiro. Não temos mecanismos de cuidado e prevenção. Nos sentimos desprotegidos porque nossa cultura reativa não permite que tenhamos um sistema de proteção confiável. Governos e organizações de todos os portes e todas as naturezas não investem em conhecimento e capacitação das pessoas para o cuidado de si e da coletividade.
Rosângela Florczak é especialista em prevenção de crise em organizações educacionais. / Foto: Arquivo pessoal
Não sabemos como agir quando nos defrontamos com ameaças. Escolhemos não mapear riscos, não falar em prevenção para não causar pânico, preferimos imaginar que nada de ruim vai acontecer e se acontecer não será com a gente.
Essa chave precisa virar. Se nossas crianças souberem qual a rota de fuga em uma situação de perigo, seja ele de causa natural, humana ou estrutural; se identificarmos sinais coletivamente conhecidos para reagir a esses momentos; se nossos professores e trabalhadores da educação estiverem treinados física e emocionalmente para agir; se pais e mães se alfabetizarem digitalmente e protegerem seus filhos e filhas dos perigos e riscos das mídias sociais e de todo ambiente digital, entre tantas outras atitudes preventivas possíveis, vamos enfrentar momentos difíceis com efetividade e segurança.
Construir uma cultura do cuidado não vai impedir as mazelas sociais, os desastres e as tragédias, mas vai economizar vidas e saúde mental coletiva. Vai viabilizar que trabalhemos com cenários complexos e que possamos agir com serenidade e assertividade. Já passou da hora de começar a revolução fundamental do cuidado para evitar a barbárie social.
Sobre a autora
Rosângela Florczak é Doutora em comunicação pela PUCRS. Pesquisadora do projeto Risco e Crise no contexto da Comunicação (UFRGS e PUCRS), pesquisadora do PPGCOM/PUCRS com a linha de pesquisa Prevenção e gestão de crise na ambiência digital. É especialista em prevenção de crise em organizações educacionais, tendo atuado em situações de risco em escolas de educação básica e universidade de todo o País.
Foto: Camila Cunha
Que travessia inédita esta de 2021! Mais um ano fechando as cortinas do grande teatro do mundo e uma nova aurora se iniciando. É voz corrente que o ano passou de pressa demais, como se os anos estivessem se encurtando, escapando de nós como água entre os dedos, com aquela sensação, causa de tantas ansiedades, que não somente somos mortais, como também imolados no altar implacável e na “liturgia” do deus Kronos.
Há uma expressão latina bastante usual: tempus fugit! O tempo nos escapa, ou, o tempo voa. Essa expressão aparece na obra do romano Virgílio: “Sed fugit interea fugit irreparabile tempus – traduzindo – “ Mas ele foge: irreversivelmente o tempo foge“. Sim o tempo nos escapa, mas a vida não dorme e não espera. A sabedoria latina tem em Sêneca outro grande expoente. Ele dizia que a vida tem três etapas: o que foi, o que é, o que há de ser. Diz ainda o filósofo: o tempo que nos é concedido é breve. Apressa-te a viver bem e pensa que cada dia é, por si só, uma vida. Uma jornada feita de encontros, encantos e estupores. De certo modo, e na sua devida proporção, todos nos sentimos representados no sonho de Jacó diante da Escada, metáfora que faz a memória da ligação indestrutível, mesmo que imperceptível, entre o céu e a terra, o divino e o humano. E que todo itinerário, assim como a escada, é feito de subidas e descidas, onde somos chamados a descobrir os encontros e os encantos.
Portanto, se eu pudesse propor algo para o porvir, para além dos “gurus” e “pitonisas” de plantão, das “profecias” políticas e econômicas que cada ano traz, eu colocaria a compaixão – sem vitimismo – como chave de leitura para 2022. A compaixão reconhece o outro como um próximo –e como dom – por meio de uma ternura benevolente. Se a dor e o sentimento do outro não nos toca, algo está errado. Pense nisso e se proponha a viver um “bom ano”, de confraternização universal! Que não passe inexorável como todos os outros, mas que seja novo, único, irrepetível, vivido menos com as batidas do relógio e mais com as batidas do coração.
Professora Bettina Steren/Foto: acervo pessoal
Estamos no dia 15 de outubro, período em que costuma mobilizar diferentes frentes no reconhecimento e valorização de uma profissão que contribui com tantas outras: Dia das Professoras e Professores.
Em 1994 a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO em colaboração com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) versou sobre o Estatuto dos Professores e reconheceu o dia 5 de outubro como Dia Mundial dos Professores. Já, no Brasil, o dia 15 de outubro está relacionado às decisões tomadas desde o período Imperial com a criação do Ensino Elementar por D. Pedro I.
A pandemia de coronavírus veio reforçar os desafios enfrentados na constituição de milhares de docentes do país. Evidencia-se que as discussões sobre as incertezas e o destino da educação tornaram-se presentes nas diferentes regiões. No entanto, cabe destacar alguns aspectos que nos aproximam e nos distanciam em nossa própria profissão.
As condições do trabalho docente estão relacionadas com os fatores paradigmáticos, históricos, políticos, socioculturais e econômicos que envolvem a educação. Ou seja, se associam às concepções sobre o papel, valor e função da profissão às políticas públicas da educação, infraestrutura das instituições, formação, salários, gestão escolar, esferas pública e privada, modalidades de ensino, gênero, classe, identidades e questões socioafetivas.
Tanto tem se falado sobre o Burnout (FREUNDENBERG, 1974), a exaustão física e emocional, incentivando o debate sobre a saúde mental e o adoecimento de milhares de profissionais. Nesse sentido, é possível destacar o fenômeno do “mal-estar docente” cada vez mais presente no país e em seus diferentes contextos.
Professora Fernanda Silva do Nascimento/Foto: Acervo Pessoal
O “mal-estar docente” tornou-se objeto de estudo entre as décadas de 70 e 80 no Brasil. A natureza de seus fatores e indicadores fazem da temática uma questão complexa, das quais diferentes áreas podem contribuir com a reflexão sobre suas causas e possibilidades de enfrentamento. No entanto, é primordial a escuta e reconhecimento da pessoa-docente pela sociedade. Afinal, tratam-se de vidas, trajetórias, lutas, resistências e escolhas diárias que traçam como é ser, estar e tornar-se docente no Brasil.
As pesquisas realizadas pela doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, Fernanda Silva do Nascimento, sob orientação da Dra. Bettina Steren dos Santos e parceria com o Grupo de pesquisa Promot (PUCRS) apontam que determinadas concepções de educação e das ciências têm reunido os aspectos afetivos, emocionais e psicológicos às questões cognitivas e sócio-históricas mostrando a necessidade de superar o pensamento disjuntivo e fragmentado por ideias mais abrangentes e dialógicas.
Os principais resultados apontam que o fenômeno do mal-estar docente está presente em escolas públicas e privadas do Rio Grande do Sul, assim como foram identificados elementos que contribuem com a promoção do bem-estar docente.
Observou-se que há uma correlação entre as esferas no que tange: a sobrecarga de trabalho, a percepção de desvalorização da profissão por parte da sociedade e os desafios relacionados às exigências e excesso de dedicação. Ademais, verificou-se que as relações interpessoais negativas, autoritárias e abusivas em certas instituições e os conflitos ideológicos contribuem com o desenvolvimento do mal-estar docente. Já os baixos salários, apontados com frequência, fazem com que docentes busquem mais de uma escola para trabalhar a fim de complementar suas rendas resultando em sobrecarga e estafa profissional.
Alguns desafios foram potencializados tendo em vista o ensino remoto emergencial: dificuldades no uso das tecnologias digitais, falta de recursos para melhor acessibilidade de docentes e estudantes e as incertezas e inseguranças geradas pelos altos índices de mortalidade, riscos de contaminação, precarização do trabalho, desigualdade econômica-social, negacionismo e medidas adotadas pelo atual governo do país.
As principais estratégias empregadas para enfrentamento pelos profissionais envolveram: o autoconhecimento (autoconceito, autoimagem, autoestima, imagem profissional), uso de recursos financeiros próprios ou familiares, exploração de metodologias de ensino criativas, formação continuada, parceria entre colegas de trabalho e apoio de profissionais da área médica e psicológica.
Enfatiza-se que o corpo docente deve ser escutado para que se possa compreender suas reais necessidades, os projetos pedagógicos e investigativos precisam ser construídos com a colaboração da comunidade educativa que somos convidadas a construir legitimando as propostas pedagógicas das instituições e reduzindo o distanciamento entre o que se diz, se inscreve nos textos normativos e o que se faz em nossa sociedade.
Além disso, o bem-estar docente se destacou orientado pela satisfação e valorização profissional, motivação e autorrealização. Não envolve somente às questões de saúde mental e deixa em evidência a necessidade de investimento das diferentes frentes e a relevância dos aspectos da resiliência, formação permanente, afetividade (do afetar-se), trabalho colaborativo e reconhecimento das iniciativas e instituições que contribuem com a promoção do bem-estar. Ainda que se considere seus traços subjetivos, se exibe o caráter político e a importância das relações dialógicas e coletivas em assegurar os direitos do professorado. O que temos feito?
Estamos diante de uma situação que envolve uma mudança de cultura, que implica o envolvimento de toda a sociedade para poder transformar a Educação e consequentemente a qualidade de vida dos cidadãos, milhares de professoras e professores.
Ma. Fernanda Silva do Nascimento (Doutoranda em Educação) e a Dra. Bettina Steren dos Santos.
Texto foi publicado no jornal Zero Hora / Foto: Bruno Todeschini
Neste momento de pandemia, em que a espera parece não ter fim, precisamos nos manter críticos e vigilantes em relação às ideologias e práticas que reduzem o ser humano, que o classificam por razões forjadas na mentira e no desamor. Lembro-me das palavras de um sobrevivente ao campo de concentração que nos deixou um legado imensurável: Viktor Frankl, que em 1984 esteve na PUCRS para receber o título de Doctor Honoris Causa: “pode-se tirar tudo de um homem exceto uma coisa: a última das liberdades humanas – escolher a própria atitude em qualquer circunstância. Se percebemos que a vida realmente tem um sentido, percebemos também que somos úteis uns aos outros”.
Cuidado e cura andam juntos, na origem da primeira palavra está o significado da segunda. Cura é um dos sinônimos eruditos de cuidado, presente na famosa obra Ser e Tempo, de Martin Heidegger. Em seu sentido mais antigo, cura se escrevia em latim coera e se usava em um contexto de relações humanas de amor e de amizade. Cura queria expressar a atitude de cuidado, de desvelo, de preocupação e de inquietação pelo objeto ou pela pessoa amada. O cuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo então a dedicar-me; disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de suas conquistas, enfim, de sua vida.
Não habitamos o mundo somente por meio de nosso trabalho. Outra forma de ser no mundo se realiza pelo cuidado – o que não se opõe ao trabalho, mas lhe confere uma modalidade diferente, onde a relação com as pessoas não é sujeito-objeto, mas sujeito-sujeito. A relação não é de domínio, mas de convivência. Não é pura intervenção, mas principalmente interação e comunhão.
Um dos desafios para o ser humano é combinar trabalho com cuidado. Eles não se opõem, mas se compõem. Quando tentados a criar dicotomias na vida diante de ameaças e incertezas, recordemos que somos seres de relações ilimitadas, de criatividade, ternura, cuidado, de espiritualidade; portadores de um projeto sagrado e infinito. Em tempo de pandemia é isso que precisamos. Humanizar o mundo torna-se uma questão crucial e decisiva para o destino do planeta e de seus habitantes. Não há cura fora de nossas próprias fragilidades e potencialidades para transformar a natureza e a nós mesmos.
Irmão Evilázio Teixeira, reitor da PUCRS / Foto: Camila Cunha
Uma universidade deve ser distinguida pela forja ética do pensamento, composta de homens e mulheres que são responsáveis pela sociedade e estão dispostos a colocar seus talentos a serviço do bem comum. Em 9 de novembro de 1948, há 72 anos, foi constituída a Universidade Católica do Rio Grande do Sul; dois anos depois, com o reconhecimento do Vaticano, ganhou o título de Pontifícia.
Era a concretização de um sonho acalentado muitos anos antes. Foi no início da década de 30 que um grupo de educadores com sólida formação humanística, religiosa e técnica reuniu-se com o firme propósito de empreender algo inédito: cursos de Ensino Superior que atendessem às demandas da sociedade gaúcha. Sob a liderança do Irmão Afonso, esse grupo de pioneiros levou adiante o projeto.
Vivemos nestas duas primeiras décadas do século 21 um cenário de permanentes e aceleradas transformações econômicas, políticas, culturais e sociais. A pandemia da covid-19 trouxe ainda novos desafios em escala planetária. Mais do que nunca, as instituições de educação superior devem assumir o protagonismo frente às necessidades desse momento, atuando como impulsionadoras para o desenvolvimento de uma sociedade melhor, de uma humanidade mais fraterna.
Formar pessoas e profissionais competentes implica em educar indivíduos com aspirações infinitas, corações sensíveis, capazes de criativamente melhorar o mundo, do contrário, estaríamos graduando seres humanos míopes, numa espécie de lógica da eficiência, mas vivendo uma vida dividida; utilizando uma expressão de Max Weber: “Especialistas sem espírito e sensualistas sem coração”. Educação ligada com a vida tem a ver com aprender a viver melhor.
Aqui coloca-se o desafio de encontrar uma hermenêutica para o século 21 que seja capaz de nos propor uma nova gramática baseada na sabedoria. Esta “nova gramática” implica numa narrativa que seja também uma declaração de amor à vida em prol da construção de um futuro com mais plenitude.
Jorge Audy, Superintendente de Inovação e Desenvolvimento da PUCRS / Foto: Camila Cunha
A evolução da sociedade passou por diversas ondas ou etapas, desde a posse da terra como principal fator de geração de riqueza, passando pela Revolução Industrial nos séculos XVIII e XIX, deslocando o eixo para as máquinas e as indústrias. Na segunda metade do século XX, a revolução da tecno ciência muda novamente os principais fatores de geração de riqueza, com a emergência da sociedade do conhecimento, com o foco na tecnologia e na inovação. Neste século XXI, diversos eventos e sinais vêm sendo enviados do futuro com relação à um novo ciclo de transformação na sociedade, onde a crise sanitária que vivemos é somente um destes sinais. As questões sociais, em especial o desafio da desigualdade em suas diferentes dimensões e as questões ambientais, em especial as mudanças climáticas e os impactos no meio ambiente, são temas centrais com relação ao próprio futuro da humanidade.
Uma das mais importantes discussões hoje no mundo vem da Inglaterra, em torno dos negócios de impacto social e ambiental. Neste sentido, Sir Ronald Cohen aborda o tema da Revolução do Impacto, cuja questão básica é: que tipo de mundo nós queremos viver no futuro?
Estamos hoje imersos ainda na primeira fase da pandemia, o que poderíamos chamar de sobrevivência, tentando nos manter vivos e os negócios viáveis. Logo, ingressaremos em uma segunda fase, ainda crítica, que envolverá a recuperação: será a hora de retomarmos nossas atividades relacionais, sociais e profissionais. Somente depois chegaremos na fase da renovação, o que muitos chamam de novo normal, que é muito difícil de prever ou antecipar. Mas parece que todos concordamos que não seremos os mesmos. Não nos comportaremos da mesma forma. Novos paradigmas irão emergir.
Quase impossível saber ou antecipar o que virá. No máximo podemos ler alguns sinais do futuro e imaginar algumas possibilidades. Provavelmente, as transformações virão em duas frentes: pessoal e social, profissional e dos negócios. Na frente pessoal e social talvez emerja um novo humanismo, como atitude frente aos desafios, como uma nova forma de estar no mundo. Humanismo como uma nova forma de cuidarmos uns dos outros. Pensar o coletivo antes do individual.
Na frente profissional e dos negócios, talvez emerja um novo conjunto de valores a nortear a ação das organizações, não somente da percepção social, mas também novos padrões de análise dos negócios, onde o impacto social e ambiental dos empreendimentos se tornem tão importantes quanto seus resultados financeiros. Podemos imaginar um mundo onde as pessoas tenham mais responsabilidade e ciência de seu papel na sociedade, onde o consumo seja mais consciente, onde possamos (e devamos) escolher onde trabalhar, o que comprar e em quem investir, de acordo com valores que nos sejam relevantes. Valores globais, com senso de bem comum e responsabilidade pelo futuro do planeta.
Assim como a grande crise de 1929 mudou para sempre a forma como as empresas atuam, são avaliadas e auditadas, esta crise de 2020 pode ser um marco para uma nova forma de avaliar as organizações e seu papel social. Existem muitos desafios que devemos superar como sociedade, os 17 ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) da ONU indicam com clareza estes desafios. O que devemos fazer é direcionar o melhor dos nossos esforços e capacidades no desenvolvimento de ações de Impacto. Impacto social, Impacto Ambiental. Devemos, juntos, mudar as regras do jogo. O modelo mundial vigente não atende mais nossas expectativas de um mundo melhor. A Revolução da tecno ciência deve ser seguida por uma Revolução de Impacto Social e Ambiental. Podemos pensar em gerar resultados econômicos e impacto social e ambiental simultaneamente. Um não deve mais excluir o outro.
Desde a encíclica Laudato Si, do Papa Francisco, até pensadores como o inglês Sir Ronald Cohen, cada vez mais a pauta social e a pauta ambiental se tornam mais e mais relevantes. Para nosso futuro. Para o futuro da humanidade. Para transformar o mundo em um lugar melhor para se viver, menos desigual, reduzindo a pobreza e ampliando as possibilidades de desenvolvimento pessoal por meio de uma educação de qualidade, transformadora, inclusiva. Para todos. Pelo bem de todos.
Ir. Evilázio Teixeira / Foto: Camila Cunha
A evolução de uma organização implica superar desafios, assegurando sua missão, visão, mantendo a capacidade competitiva e inovação. Por mais precisos que sejam os conceitos e estruturados os planejamentos, há variáveis incontroláveis que alteram cenários. Como diz a velha máxima: “quando pensamos ter todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas”. Há quem diga que o século XXI começa agora. As consequências da pandemia não podem ser vistas isoladas do momento que vivíamos antes do surto. Temos uma aceleração e amplificação de problemas já existentes. Por exemplo, a retomada da economia brasileira não se concretizou e acabou intensificando a dificuldade na mitigação das fragilidades explicitadas pelo efeito COVID-19.
No Ensino Superior, os desdobramentos da pandemia determinaram a busca de soluções dinâmicas. A impossibilidade de se prever a evolução da própria doença, aliada à crise econômica, determinaram a adoção de planos de contingência e a construção de caminhos alternativos. Entre a decisão de suspender as atividades presenciais e o reinício das aulas na modalidade online, bem como a continuidade de importantes pesquisas, houve um intervalo de poucos dias. Isso foi possível por meio da superação de desafios práticos, como a elaboração de protocolos de prevenção e segurança, a mobilização das equipes, o uso de novas ferramentas de ensino e o empenho para manter a motivação e o engajamento de professores, técnicos e estudantes. Trabalho, criatividade, solidariedade e empatia têm sido palavras-chave nesse contexto.
Passado o momento mais crítico, caberá às organizações “repensar” e “reimaginar” sua atuação, ou seja, rediscutir objetivos e estratégias num cenário em que se destacam os novos modelos de trabalho, a mediação tecnológica no ensino-aprendizagem, novos jeitos de consumir e conviver. Dito em outras palavras: o que imaginamos para alguns anos à frente tornou-se imperativo no presente. Certamente planos definidos no período anterior à pandemia terão valor reduzido – ou simplesmente serão inúteis. Planejar para este “novo futuro” é significativamente diferente e mais desafiador do que planejar para aquele “velho futuro”. Um novo começo requer paciência, ousadia e esperança.
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