Com o auxílio da tecnologia já se descobriu que práticas como orar e meditar podem blindar o cérebro contra diversas doenças
Para o diretor do Instituto do Cérebro (InsCer) e médico docente da PUCRS, Jaderson Costa, em tempos de inteligência artificial e robotização, entender a essência humana é cada vez mais importante. / Foto: Giordano Toldo
Uma freira se posta em genuflexão à frente do altar da Igreja Universitária Cristo Mestre, na PUCRS. Ela une as mãos, cerra os olhos e se entrega a uma compenetrada oração. As lágrimas vertem fartas, enquanto uma sensação de leveza toma o seu ser. Longe dali, um monge senta-se em lótus sobre uma rocha milenar dos Himalaias. A boca murmura um mantra, e os dedos correm o japamala – o cordão de contas dos iogues. O frio e o mundo à sua volta, os pensamentos e seu próprio corpo, tudo parece se dissipar no vaivém do ar gelado em suas narinas.
A freira e o monge são movidos por crenças pessoais distintas. Mas o cérebro de ambos experimenta sensações quase idênticas, advindas da introspecção mística. Você também pode vivenciá-las, mesmo se não der bola para temas transcendentais. Basta fechar os olhos e concentrar-se na sua respiração. Uma ebulição química logo será desencadeada. O cortisol, hormônio do estresse, cairá rapidamente. Em contrapartida, haverá uma torrente de serotonina, dopamina e ocitocina – presentes em estados de felicidade, prazer e afetuosidade.
Outra mudança ocorre no recrutamento das áreas cerebrais. O lobo parietal, responsável pelas percepções físicas, é quase desativado. Daí vem a sensação de torpor e a perda da noção de espaço-tempo. O cérebro também possui um piloto automático, acionado quando estamos ruminando ideias. Chamado de rede padrão, esse sistema se desarma durante orações e em estados meditativos. Assim, o fluxo de pensamentos é freado, viabilizando o esvaziar da mente e o terreno para o êxtase místico.
“Algumas pessoas conseguem alcançar uma abstração mais profunda e entram quase em estágio de flutuação”, confirma o neurocientista Jaderson Costa da Costa, diretor do Instituto do Cérebro (InsCer) e médico docente da PUCRS.
A divisão entre ciência e espiritualidade começa a ser extinguida pelo trabalho de pessoas como ele – há 10 anos dedicado ao tema. Mas essa reaproximação tem mais tempo: o primeiro artigo médico sobre a importância de práticas religiosas para a saúde data de 1910. Os grandes avanços é que vieram nas últimas décadas, levando ao surgimento da chamada neuroteologia.
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Na atualidade, a exploração empírica se dá por meio de técnicas como o ultrassom. Um dos estudos basilares foi realizado pela Universidade da Pensilvânia (EUA), em 2001. Oito monges tibetanos foram submetidos a tomografias enquanto meditavam. Em 2003, o mesmo ocorreu com freiras franciscanas em oração. As áreas de ativação cerebral foram iguais nos dois grupos. Isso permitiu o entendimento de que a experiência espiritual, embora subjetiva, tem seus traços comuns. Outro aspecto compartilhado é o benefício trazido aos praticantes.
O Women’s Health Initiative, organizado pelo National Institutes of Health (EUA), avaliou 43 mil mulheres em menopausa. As participantes que mantinham atividades espirituais apresentaram menores índices de AVC, câncer e suicídio. Já um levantamento da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) analisou 130 pessoas e encontrou uma relação direta entre práticas espirituais e a queda dos níveis de ansiedade e depressão.
A explicação está no banho de neurotransmissores benéficos e em reconfigurações da estrutura do cérebro. Um estudo da Universidade de Columbia (EUA), por exemplo, constatou mudanças na espessura do córtex. Análises anteriores indicaram que pessoas propensas à depressão têm essa camada externa mais fina. Nota-se o oposto em quem se dedica a orar e meditar.
Possuir um córtex robusto, entretanto, não indica que você será uma pessoa de fé. A relação de causa e efeito parece ser inversa. Ou seja, essas atividades tendem a promover a neuroplasticidade – a capacidade de o cérebro se modificar a partir de estímulos. Então a espiritualidade seria um marcador evolutivo da humanidade? Um estudo de Harvard (EUA) vai nesse sentido.
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As sinapses são os impulsos elétricos que interligam os neurônios, criando rotas de informação. Cientistas da Faculdade de Medicina de Harvard descobriram que os circuitos da fé se alocam na Substância Cinzenta Central (PAG, na sigla em inglês) – uma região ligada a sensações como medo e resiliência a dor. A PAG é uma área extremamente primitiva do cérebro. Assim, é possível inferir que a experiência espiritual é inata à nossa espécie.
“Há funções que são absorvidas, a exemplo da matemática. Já outras são intrínsecas, como a linguagem. A espiritualidade pertence ao segundo tipo. Somos seres espirituais por natureza”, explica Costa.
O neurocientista ressalta que esse fator independe de uma crença vertical em algo supremo. Isso porque também há uma dimensão horizontal da espiritualidade, expressa por meio da empatia com o próximo. Em casos assim, os estímulos cerebrais são um pouco distintos. Mas os benefícios se parecem.
“Quando acolhemos o sofrimento de alguém, o cérebro recruta áreas de prazer e satisfação semelhantes às estimuladas por certas drogas. A diferença, claro, é que esses atos são construtivos e nos dignificam”, compara Costa.
Essa é a origem da sensação de recompensa vivenciada por quem se entrega a causas humanitárias. E também explica, em parte, por que a atenção aos efeitos da espiritualidade está entre as vanguardas da ciência.
A PUCRS, por exemplo, tem uma disciplina sobre o tema desde 2020. Foi introduzida no curso de Medicina a pedido dos próprios alunos. Antes disso, em 2018, discentes de Medicina, Teologia, Psicologia e Filosofia haviam criado a Liga Acadêmica de Espiritualidade e Ciência (Liase). O núcleo fomenta a investigação acadêmica sobre espiritualidade, religiosidade e saúde – por meio de estudos e eventos.
Para Jaderson da Costa, essas ações consolidam uma nova cultura da espiritualidade no ambiente científico – um fenômeno acelerado pela pandemia e o surgimento das novas tecnologias. “Em tempos de inteligência artificial e robotização, entender a essência humana é cada vez mais importante.”
Os alunos da PUCRS podem exercer a introspeção de diversas formas. Uma delas é pelo Projeto de Meditação. O programa, coordenado pelo Centro de Pastoral e Solidariedade, oferece sessões diárias. As atividades envolvem diferentes linhas de conhecimento – como meditação cristã, zenbudismo e mindfulness.
“A universidade é o lugar da pluralidade. Conjugar essas tradições é um exemplo de como as coisas podem caminhar juntas”, explica João Fett, coordenador da Pastoral. Guiadas por especialistas, as aulas gratuitas acontecem na sala de meditação (Prédio 15), no Tecnopuc (Prédio 96C), na Igreja Cristo Mestre (aberta de segunda a sexta, das 7h às 22h) e nos jardins do Campus.
*Texto originalmente publicado na edição 194 da Revista da PUCRS, lançada no mês de março de 2024. A produção foi cocriada com a República Conteúdo e a edição completa está disponível para download neste link.
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