Na peça de teatro do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1882), a ação passa-se numa pequena cidade na costa meridional da Noruega cuja maior fonte de renda advém de sua estação balneária. O Dr. Stockmann identifica que a água está poluída, aparentemente devido a lançamentos de impurezas dos curtumes da cidade. Médico dedicado à ciência, sente-se no dever de levar a verdade ao povo, mas a denúncia representará o encerramento do balneário, o que causaria um transtorno para a cidade, que deixaria de lucrar com o turismo. E então ele é apontado como inimigo do povo! Inimigo do povo! Inimigo do povo!
Há espaço para equilibrarmos as ações promotoras da vida com as necessidades econômicas? Nesta pandemia, enfrentamos um inimigo invisível que dizima populações. Não é de hoje que as decisões duras impostas pelo dilema da preservação da vida e as repercussões econômicas vêm ao debate público. Todos admitimos que o princípio sagrado da preservação da vida prevalece sobre qualquer outro. Mas também todos concordamos que o caos econômico pode se tornar letal à vida até então preservada. A despeito das questões ideológicas, os interesses mesquinhos e particulares, devemos entender que a pandemia do novo coronavírus é única, com padrões de transmissão, distribuição etária e viabilidade no meio externo desconhecidos de todos nós. Ainda que o curso dessa pandemia seja impossível de prever, sabemos que a fase inicial é o momento adequado de agir com celeridade.
Como na prática médica em geral, por vezes, os tratamentos são realizados em etapas ou ciclos e estes ocorrem em tempos diversos. A primeira etapa envolve a conscientização da população e a forte participação dos meios de comunicação, da academia e de toda a sociedade para o preparo e entendimento da gravidade da pandemia, acompanhado de medidas restritivas severas com repercussões na vida de cada cidadão e na economia. O distanciamento social nunca é popular. O objetivo não é conter a doença, mas atenuar seus efeitos para reduzir a mortalidade e o número de indivíduos que necessitará de atendimento hospitalar, mormente de tratamento intensivo. E, assim, evitar a falência do sistema de saúde e as escolhas de Sofia!
Não podemos “matar da cura”, mas temos que evitar de apontar o Inimigo do Povo. Infelizmente com custos para a vida e para a atividade econômica, pois sabemos que tais consequências são inevitáveis, embora trabalhemos para minimizá-las. Mas, para isso, temos que passar pelo primeiro ciclo do tratamento e evoluir para o seu aprimoramento contínuo.
Não há caminhos mágicos, mas a prevenção no tempo certo é a melhor escolha para salvaguardar a vida e, ao mesmo tempo, uma economia voltada a sustentar uma casa compartilhada por todos.
O professor Jaderson é graduado em Medicina, tem especialização em Neurologia, mestrado em Ciências Biológicas (Fisiologia e Neurociências), doutorado em Ciências Biológicas (Fisiologia) e Research Fellowship em Neurologia (Neurofisiologia Clínica) na Harvard Medical School. É docente da PUCRS há 48 anos. Atualmente é professor titular da Escola de Medicina, professor adjunto associado da Universidade de Miami, além de vice-reitor da PUCRS e diretor do Instituto do Cérebro (InsCer).