Impacto Social

Com ingressos esgotados, Coletivo Ocutá apresenta três sessões de O Avesso da Pele

quinta-feira, 21 de março | 2024

A peça, baseada no livro de mesmo nome do autor Jeferson Tenório, faz parte da programação da 30º edição do Porto Alegre em Cena

O espetáculo de O Avesso da Pele lotou o Salão de Atos da PUCRS na noite de quarta-feira (20). / Foto: Giordano Toldo

Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era esse o seu modo de lidar com as coisas. Foi assim que começou a apresentação da peça O Avesso da Pele. Baseada no livro de mesmo nome do escritor Jeferson Tenório, o espetáculo lotou o Salão de Atos da PUCRS na noite de quarta-feira (20). Com 1,600 mil pessoas na plateia, a peça foi realizada pelo Coletivo Ocutá e faz parte da 30º edição do Porto Alegre em Cena. Para o professor e diretor do Instituto de Cultura da PUCRS, Ricardo Barbarena, a noite foi histórica e traz para o debate o racismo sofrido diariamente por pessoas negras.  

“Trata-se de uma noite histórica dentro do Porto Alegre em Cena, que é realizado pela PUCRS, juntamente com a Voz Cultural e Prefeitura de Porto Alegre, na qual assistimos uma grande reflexão estética e política sobre uma das piores mazelas da sociedade brasileira: o racismo. Alinhado aos últimos momentos culturais promovidos pela PUCRS, a peça O Avesso da Pele foi um momento especial para despertar a sensibilidade e o senso crítico”, celebra Barbarena que também foi professor do Jeferson Tenório.  

O Avesso da Pele se passa em Porto Alegre, na década de oitenta, e conta a história de Pedro, filho de um professor de literatura assassinado em uma desastrosa abordagem policial. Após este episódio, ele inicia uma investigação acerca de suas origens, o passado da sua família e a trajetória de seu pai, Henrique. Construindo assim, uma jornada que elucida não só questões de paternidade preta em um país marcado pelo racismo, mas também os caminhos que levam ao afeto e à redenção.     

O livro, que foi vencedor do Prêmio Jabuti em 2021 na categoria Romance literário, nasceu durante o doutorado em Teoria Literária na PUCRS. Para Jeferson, estrear a peça em Porto Alegre (local onde o livro se passa) traz ao autor um misto de emoções. Feliz, diz que se sentiu comovido de encontrar seus ex-professores, orientadores, conhecidos, amigos, parentes, colegas e professores.  

“Está sendo uma noite muito especial para mim e fico muito feliz, muito comovido. Porque é um retorno ao passado como acadêmico, como estudante. De certa forma, a minha carreira como escritor tem a ver com a minha passagem na PUCRS como doutorando. É uma alegria muito grande esse retorno”.

Das páginas para o palco  

Jeferson Tenório venceu o Prêmio Jabuti em 2021 na categoria Romance Literário pelo livro O Avesso da Pele. / Foto: Giordano Toldo

A adaptação do livro para uma peça de teatro foi pensada e produzida pelo Coletivo Ocutá. Com direção de Beatriz Barros, o espetáculo de 1h30 foi conduzido pelos atores Alexandre Amano, Bruno Rocha, Marcos Oli e Victor Salomão, que se alternam entre os personagens, de modo que todos foram pai (Henrique) e filho (Pedro). Depois da apresentação, aconteceu um bate-papo com o elenco e produtores da peça, junto com o escritor Jeferson Tenório. Na conversa, o autor foi perguntado sobre sua inspiração para escrever o livro. Com mais de 20 anos de experiência em escola pública a particular, Jeferson acompanhou de perto a dinâmica e o ambiente escolar.  

“Eu quis levar o leitor para dentro da sala de aula. E foi isso que aconteceu hoje. O Alexandre, Bruno, Marcos e Vitor transformaram o teatro em uma grande sala de aula. Esse era o objetivo, fazer quem não tem nenhuma noção do que significa ser professor entendesse como funciona esse ambiente. Então a minha inspiração tem a ver com isso. E tem a ver com a minha experiência enquanto homem negro no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, sabendo que eu me sinto estrangeiro em determinados lugares. Acho que a paternidade também me fez ter uma outra necessidade, que seria me pensar, enquanto pai, e como lidar com essas questões da violência para as crianças. Então acho que foi também um momento para me pensar e, de certo modo, também pensar na caridade da educação, no racismo estrutural, na violência policial, e assim por diante”.

Transformar um livro em um espetáculo teatral não é um trabalho fácil, e trazer uma obra que aborda tantos assuntos pertinentes como racismo para a arte cênica requer estudo e técnica. Para trazer O Avesso da Pele para o palco, foram anos de ensaios e preparações. Tratando-se de uma adaptação, a obra pegou o tema central do livro (a relação entre pai e filho) e explorou a partir dali. Entre as cenas, se destaca a da terapia de casal, em que Henrique e Marta, pais de Pedro, frequentam uma psicóloga para tentar salvar o relacionamento.  

Para Tenório, esta cena foi construída de forma genial na peça e recorda que, quando escreveu o livro, esta não era uma passagem que ele dessa muita importância. Recorda, também, que quando o livro saiu ele começou a ser chamado para falar em grupos de psicólogos e psicanalistas sobre o assunto. 

“Tive que me defender dizendo que eu, enquanto Jeferson, não tinha nada contra eles, e sim Pedro, meu personagem. Eu acho muito legítima essa curiosidade dos leitores de saber o que é Jeferson e o que é Pedro no livro. Será que nessa passagem aqui ele está falando dele ou é o personagem? Eu adoro isso, porque aí é que está a magia da ficção, que é justamente fazer esse embaralhamento na cabeça do leitor, porque, honestamente, eu também não sei o que é meu, o que é da ficção e o que é da literatura. E toda vez que eu tentei escrever um texto que fosse exatamente do jeito que eu vivi, não deu certo. Precisava sempre aumentar ou diminuir alguma coisa.”

Para além da censura 

O livro O Avesso da Pele tem sido alvo de censura e represálias nos últimos meses em diversos estados do Brasil. Com isso, o número de vendas do livro aumentou em 400%. O Salão de Atos da PUCRS lotado e os ingressos esgotados representam para Jeferson a melhor resposta para uma situação em que há censura: a literatura está sendo valorizada.   

O Coletivo Ocutá realiza hoje (21) mais uma apresentação da peça O Avesso da Pele e o espetáculo conta com intérprete de Libras e Audiodescrição. Na sexta-feira (22), com mediação de Ricardo Barbarena, Jeferson Tenório irá participar de um bate-papo na Escola de Humanidades com o também escritor Marcelino Freire, a partir das 18h. Todos os livros publicados até o momento por Jeferson Tenório podem ser encontrados na Biblioteca da PUCRS e o livro O Avesso da Pele também se encontra disponível na versão em braile. 

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