Pela primeira vez no Brasil foi realizada uma pesquisa que analisa dados de discriminação e seus danos, para os portadores de HIV e AIDS no país. O estudo foi feito com 1.784 pessoas, em sete capitais brasileiras – Manaus, Brasília, Porto Alegre, Salvador, Recife, São Paulo e Rio de Janeiro – entre abril e agosto de 2019. A PUCRS, uma das parceiras da pesquisa, foi representada pelo professor da Escola de Ciências da Saúde e da Vida e coordenador do Grupo de Pesquisa Preconceito, Vulnerabilidade e Processos Psicossociais da Universidade, Angelo Brandelli, responsável pela pesquisa. “O Brasil está em patamar similar ao dos países da África, onde não existe histórico tão grande de mobilização social e luta por direitos humanos em relação ao HIV/Aids como existiu aqui”, alerta o professor. O relatório completo pode ser conferido neste link.
O Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS – Brasil analisou que 64,1% das pessoas entrevistadas já sofreram alguma forma de estigma ou discriminação pelo fato de viverem com HIV ou com AIDS. Comentários discriminatórios ou especulativos afetaram 46,3% delas, enquanto 41% do grupo diz ter sido alvo de comentários feitos por membros da própria família. O levantamento também evidencia que muitas destas pessoas já passaram por outras situações de discriminação, incluindo assédio verbal (25,3%), perda de fonte de renda ou emprego (19,6%) e até mesmo agressões físicas (6,0%).
Perfil dos participantes
Em sua maioria, as quase 1.800 pessoas que participaram do Índice de Estigma no Brasil são negras e vivem com HIV, em média, há dez anos. Dados recentes sobre a epidemia de HIV no Brasil, divulgados pelo Ministério da Saúde no Boletim Epidemiológico HIV/AIDS 2019, mostram que o número de óbitos por causas relacionadas à AIDS cresceu 22,5% entre a população negra na última década enquanto, entre a população branca, a tendência é inversa: queda de 22,2%. Considerada a proporção de pessoas negras respondentes nesta pesquisa do Índice de Estigma, este estudo surge como uma importante fonte de referência para a análise de possíveis causas sociais subjacentes para estas tendências verificadas no país.
Outro dado que se destaca do estudo é que mais de 30% dos participantes declararam estar desempregados no momento da pesquisa e quase metade enfrentaram, nos últimos 12 meses, dificuldades momentâneas ou frequentes para atender às suas necessidades básicas de alimentação, moradia ou vestuário.
Revelação do diagnóstico e discriminação
Para 81% das pessoas entrevistadas ainda é muito difícil revelar que vivem com HIV. Em geral, as pessoas responderam que não têm boas experiências ao revelar sua condição positiva para o HIV a quem não é próximo. Vizinhos e vizinhas foram as pessoas que, com mais frequência (24,6%), souberam dessa condição sem o consentimento das pessoas vivendo com HIV. Cenário semelhante foi relatado entre colegas de escola (18,2%), professores e demais profissionais do ambiente escolar (15,3%).
Muitas pessoas preferem falar abertamente sobre seu estado sorológico positivo para o HIV somente com parceiros e parceiras fixas (80,4%). Contudo, este dado revela também o outro lado da moeda: ainda hoje, quase 20% das pessoas que vivem com HIV ou que vivem com AIDS não conseguem revelar a parceiros e parceiras fixas a sua condição por medo do estigma e da discriminação.
As diversas formas de estigma e discriminação que afetam pessoas vivendo com HIV e vivendo com AIDS incluem, entre suas consequências mais frequentes, o assédio moral, a exclusão social, a agressão física e a perda do emprego—mesmo com o arcabouço legal já existente no país para proteger estas pessoas, reforçado pela lei 12.984/2014, que tornou crime punível com reclusão e multa atos de discriminação contra pessoas vivendo com HIV ou com AIDS.
O medo de sofrer discriminação e a culpa por estar vivendo com HIV ou vivendo com AIDS são sentimentos frequentes entre as pessoas que participaram desta pesquisa. Estes dados do estudo demonstram que viver com HIV produz percepções e sentimentos que não afetam apenas a relação com os outros, mas também consigo mesmo. Um(a) em cada 3 respondentes declararam ter vergonha de ser soropositivo(a) para o HIV e se sentirem culpados por sua condição de saúde.
Um dado bastante preocupante do estudo, é o de que quase metade dos respondentes (47,9%) declararam ter sido diagnosticados com algum problema de saúde mental nos últimos 12 meses.
Discriminação nos serviços de saúde
Na relação com os serviços de saúde, o estudo aponta que 15,3% das pessoas entrevistadas afirmaram ter sofrido algum tipo de discriminação por parte de profissionais da saúde pelo fato de viverem com HIV ou com AIDS, incluindo atitudes como o esquivamento do contato físico (6,8%) e a quebra de sigilo sem consentimento (5,8%). Estes dados contrastam com qualquer diretiva de atendimento humanizado preconizada no Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar de os relatos terem vindo de uma minoria participante do estudo, é importante ressaltar que os protocolos e as leis garantem que ninguém deveria passar por este tipo de constrangimento ou agressão.
A maior parte das pessoas (72%) indicou que sua testagem para o HIV aconteceu por vontade própria. Mas o estudo apontou que ainda há um contingente bastante significativo (24%) entre elas que afirmou não ter tido autonomia completa para tal. A questão da autonomia também pesa na área de exercício dos direitos sexuais e reprodutivos de pessoas vivendo com HIV ou vivendo com AIDS. O Índice de Estigma Brasil mostrou que houve clara violação destes direitos para 8,9% das pessoas por terem sido pressionadas a renunciar à maternidade ou à paternidade.
Considerando a diversidade das pessoas que vivem com HIV/AIDS e a sobreposição de outros importantes marcadores sociais que também são permeados por estigma e discriminação, o estudo apresenta dados sobre discriminação sofrida por motivo que não a sorologia positiva para o HIV. Foram compilados dados relacionados a orientação sexual, identidade de gênero, por ser profissional do sexo e por ser uma pessoa que usa drogas. O relatório aponta que todas as populações sofrem com elevados níveis de discriminação, sendo a população de trans e travestis a que apresentou os maiores números – 90,3% das pessoas trans e travestis relataram já ter sofrido pelo menos uma das situações de discriminação avaliadas no estudo.
Iniciado em 2008, o índice é uma iniciativa conjunta da Rede Global de Pessoas Vivendo com HIV (GNP+), Comunidade Internacional de Mulheres Vivendo com HIV/AIDS (ICW), Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF) e o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS). Desde sua criação, em 2008, o estudo já foi aplicado em mais de 100 países ultrapassando a marca de 100 mil pessoas entrevistadas.