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Artigo: O que dizem os dados da violência no Brasil?

O Anuário se destaca por incluir análises de especialistas sobre cada dimensão dos dados apresentados que vão além das estatísticas

quinta-feira, 29 de agosto | 2024

Por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da Escola de Direito da PUCRS

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública desempenha um papel crucial na construção de indicadores de segurança pública no Brasil, proporcionando uma visão abrangente e detalhada da situação da criminalidade e das políticas de segurança pública em todo o país. Desde sua primeira edição, o anuário tem sido uma fonte vital de dados, análise e reflexão crítica para formuladores de políticas, pesquisadores, sociedade civil e gestores públicos. 

O histórico da publicação do Anuário remonta a 2007, quando o Fórum Brasileiro de Segurança Pública decidiu criar uma ferramenta que unisse dados estatísticos e análises qualitativas para fornecer um retrato fiel e abrangente da violência e da criminalidade no Brasil. Desde então, a publicação anual tem se tornado uma referência essencial, ganhando cada vez mais importância à medida que a sociedade e os governos reconhecem a necessidade de políticas baseadas em evidências para enfrentar a complexidade da violência e da criminalidade. 

A importância do Anuário reside na sua capacidade de sistematizar dados de diversas fontes, como secretarias de segurança pública estaduais, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, entre outros. Essa sistematização permite a criação de indicadores robustos que não só refletem a realidade nacional, mas também permitem comparações entre estados e regiões. 

Além disso, o Anuário contribui significativamente para a transparência e a accountability no setor de segurança pública. Ao fornecer dados atualizados e de fácil acesso, com séries históricas que apontam tendências, a publicação possibilita que a sociedade civil, a mídia e os próprios gestores públicos possam monitorar a efetividade das políticas públicas implementadas, bem como identificar lacunas e ineficiências que necessitam ser corrigidas. 

O Anuário também se destaca por incluir análises de especialistas sobre cada dimensão dos dados apresentados que vão além das estatísticas tradicionais, incorporando discussões sobre direitos humanos, desigualdades sociais, racismo estrutural e outras questões fundamentais para a compreensão da segurança pública em uma sociedade complexa e desigual como a brasileira. 

A produção do Anuário Brasileiro de Segurança Pública é uma tarefa desafiadora em um país como o Brasil, historicamente marcado pela falta de transparência e pela opacidade dos dados relacionados à criminalidade e à segurança pública. A construção de indicadores confiáveis e consistentes esbarra frequentemente em entraves como a resistência institucional à divulgação de informações, a inconsistência nos registros e a ausência de padronização nos métodos de coleta de dados entre os diferentes estados. Esses desafios são amplificados pela falta de uma cultura de transparência em muitas administrações públicas, que, por vezes, preferem manter um controle rigoroso sobre a divulgação dos dados de segurança pública para evitar críticas ou escrutínio externo. 

Essa dificuldade em produzir e manter um instrumento como o Anuário reflete-se em várias situações em que governos estaduais romperam relações com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Essas rupturas são, em grande parte, motivadas pela incapacidade ou relutância desses governos em lidar com dados que expõem deficiências em suas políticas de segurança pública, como o aumento da violência policial, a superlotação carcerária ou o crescimento dos índices de criminalidade. 

Em vez de utilizarem o Anuário como uma ferramenta para diagnosticar problemas e ajustar suas estratégias, muitos governos optam por criticar ou deslegitimar os dados apresentados, evitando enfrentar as questões estruturais que os indicadores revelam. 

A viabilização do Anuário só se tornou possível em grande escala após a promulgação da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), que estabeleceu um marco legal para a transparência e obrigou os estados e municípios a fornecerem dados públicos, incluindo aqueles relacionados à segurança pública. 

Essa legislação representou um avanço significativo para a transparência no Brasil, pois impôs obrigações claras para a divulgação de informações e garantiu à sociedade civil e aos pesquisadores o direito de acesso a dados anteriormente restritos. A Lei de Acesso à Informação foi crucial para que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública pudesse compilar, analisar e publicar os dados de maneira consistente e independente. 

Entretanto, a aplicação da Lei de Acesso à Informação nem sempre é homogênea. Em alguns estados, ainda há resistência em fornecer informações completas ou atualizadas, ou os dados são apresentados de maneira fragmentada, dificultando uma análise aprofundada. Essa resistência é frequentemente alimentada por uma cultura política que teme as repercussões de tornar públicos dados sensíveis. Além disso, a falta de investimentos em tecnologia e em recursos humanos capacitados para a coleta e análise de dados também limita a qualidade das informações disponíveis. 

A criação e manutenção do Anuário, portanto, não é apenas um esforço técnico, mas um ato político de afirmação da transparência e da accountability. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública tem desempenhado um papel essencial ao insistir na importância dos dados para a construção de políticas públicas eficazes e fundamentadas. No entanto, para que o Anuário continue a evoluir e a contribuir para o debate sobre segurança pública no Brasil, é fundamental que haja um compromisso contínuo com a transparência, o que inclui não apenas a disponibilização de dados, mas também a promoção de uma cultura de responsabilização e de melhoria contínua das práticas de gestão da segurança pública. 

A resistência de alguns governos em fornecer dados completos e de qualidade reflete a necessidade de um movimento mais amplo pela transparência e pela responsabilização pública, elementos essenciais para o fortalecimento da democracia no Brasil. 

A cobertura jornalística dos dados do Anuário permite que informações detalhadas sobre violência e criminalidade cheguem a um público amplo, contribuindo para uma maior conscientização sobre os problemas enfrentados em diferentes regiões do país. Essa visibilidade midiática tem um efeito multiplicador, ao levar os dados para além dos círculos acadêmicos e de políticas públicas, engajando a sociedade civil e ampliando o entendimento das questões de segurança pública. A análise dos dados do Anuário pela mídia também pressiona gestores públicos e políticos a responderem de maneira mais transparente e a justificarem suas ações e políticas, estimulando um ciclo virtuoso de responsabilização e melhoria das práticas. 

Além disso, o Anuário possibilita a realização de análises consistentes com rigor científico sobre as séries históricas apresentadas. Ao fornecer dados de vários anos consecutivos, o Anuário permite identificar tendências, padrões de violência e criminalidade e a eficácia (ou ineficácia) das políticas de segurança pública ao longo do tempo. Essa possibilidade de análise longitudinal é essencial para desenvolver uma compreensão aprofundada e baseada em evidências sobre o que funciona ou não em termos de políticas públicas. Pesquisadores, acadêmicos e formuladores de políticas têm, portanto, à sua disposição uma base de dados confiável e abrangente para conduzir estudos que contribuam para o desenvolvimento de estratégias mais eficazes de enfrentamento à violência e ao crime. 

Dados do ano de 2023 publicados pelo 18º Anuário 

O 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela um cenário multifacetado da segurança pública no Brasil em 2023. A taxa de homicídios manteve-se elevada, especialmente devido ao uso de armas de fogo, responsáveis por 73,6% dos casos. No entanto, entre 2017 e 2023, houve uma redução significativa de 27,7% nas mortes violentas intencionais (MVI), abrangendo homicídios dolosos, feminicídios, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte, mortes de policiais e mortes decorrentes de intervenção policial. Por outro lado, a letalidade policial aumentou 23,4% no mesmo período, passando a representar 13,8% do total de MVI em 2023 . 

A violência policial continua sendo um problema grave, com destaque para municípios como Jequié, na Bahia, com 46,6 mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP) a cada 100 mil habitantes, Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, com 42,4 MDIP por 100 mil habitantes, e Macapá, capital do Amapá, com 29,1 MDIP por 100 mil habitantes, enquanto que a taxa média nacional é de 3,1 MDIP por 100 mil habitantes. O estado com maior letalidade policial foi o Amapá, com 23,6 MDIP por 100 mil habitantes, seguido da Bahia, com 12 por 100 mil, e de Sergipe, com 10,4 por 100 mil. 

Em 2023, houve uma queda de 18,1% na taxa de policiais civis e militares vítimas de CVLIs (Crimes Violentos Letais e Intencionais) em comparação com o ano anterior no Brasil, enquanto a taxa de suicídios de policiais civis e militares da ativa aumentou 26,2% no mesmo período. Focando na Polícia Militar, o número de suicídios superou, em 2023, o total de registros de PMs mortos em confronto, tanto em serviço quanto fora dele. Foram registrados 110 suicídios, em contraste com 46 casos de PMs mortos em confronto em serviço e 61 mortos em confronto ou por lesão não natural fora de serviço, totalizando 107 óbitos. 

Ainda conforme os dados do Anuário, o número de registros ativos de armas de fogo no Brasil aumentou significativamente em 2023, refletindo uma tendência de crescimento no armamento da população. Esse aumento no número de armas em circulação está diretamente relacionado ao crescimento da violência no país, especialmente no que diz respeito a crimes cometidos com uso de armas de fogo. Notícias recentes apontam a participação de Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs) no crime organizado, ampliando o acesso a armas de fogo para grupos criminosos através da compra de armamento legalmente autorizado. O crescimento no acesso a armas de fogo eleva o risco de conflitos armados e homicídios, além de dificultar o trabalho das forças de segurança no controle da criminalidade. 

A violência contra a mulher também é alarmante, com 3.930 homicídios de mulheres e mais de 200 mil casos de agressões no contexto doméstico registrados em 2023. Foram contabilizados pelo menos 199 estupros diários e 848.036 chamadas para o 190 relacionadas à violência contra a mulher, evidenciando uma crise contínua de violência de gênero no país. O feminicídio, especificamente, atingiu seu maior número desde a tipificação do crime em 2015, com 1.467 casos registrados. As maiores taxas de feminicídio foram encontradas em Rondônia, Mato Grosso, Acre e Tocantins, enquanto os estados com as menores taxas foram Ceará, São Paulo, Alagoas e Amapá . 

O 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública destaca um aumento expressivo nos furtos e roubos de celulares, assim como nos casos de estelionato, refletindo uma mudança nas dinâmicas criminais no Brasil. Esses crimes, frequentemente associados ao avanço da tecnologia e ao aumento da conectividade digital, impactam diretamente a sensação de insegurança da população. Em 2023, houve um crescimento de 8,4% nos furtos e de 10,5% nos roubos de celulares em comparação a 2022. Esse tipo de criminalidade tem se tornado cada vez mais comum, alimentado pelo alto valor de revenda dos aparelhos no mercado paralelo e pela facilidade de execução. Além disso, o anuário ressalta que o aumento dos estelionatos, especialmente os cometidos por meio eletrônico, contribui significativamente para a percepção de vulnerabilidade e medo entre os cidadãos, evidenciando a necessidade de políticas públicas mais eficazes e focadas na prevenção e no combate a esses tipos de crimes. 

Com relação ao sistema prisional, dados do Anuário mostram que o Brasil registrou um total de aproximadamente 852 mil pessoas encarceradas em 2023, incluindo presos em regime fechado, semiaberto, e aqueles em prisão domiciliar monitorada eletronicamente, que correspondem a 75,5% do total. O restante, que corresponde a presos provisórios, representa 24,5% do total. 

Em termos de taxa de encarceramento, o Brasil apresenta uma média nacional de aproximadamente 407 presos por 100 mil habitantes. No entanto, essa taxa varia significativamente entre os estados. Os cinco estados brasileiros que, em 2023, mais encarceraram, levando em conta a taxa de presos a cada 100 mil habitantes, foram o Distrito Federal, com taxa de 1.011,8 por 100 mil; o Acre, com taxa de 972 por 100 mil; Rondônia, com taxa de 915,6 por 100 mil; o Paraná, com taxa de 828 por 100 mil e Roraima, com taxa de 759,4 por 100 mil. Segundo os dados do Anuário, os estados com maior déficit de vagas são o Paraná (49.128), São Paulo (36.948) e Pernambuco (26.738). 

Por outro lado, algumas iniciativas em relação ao uso de alternativas penais, como medidas cautelares diversas da prisão, penas restritivas de direitos, e programas de monitoramento eletrônico, têm produzido resultados. Minas Gerais, por exemplo, destaca-se pelo uso relativamente maior de medidas alternativas, buscando reduzir a pressão sobre o sistema carcerário. O estado tem investido em programas de reintegração social e em práticas restaurativas, que buscam proporcionar alternativas ao encarceramento, especialmente para crimes de menor gravidade. A adoção de medidas como a suspensão condicional do processo, a suspensão condicional da pena, o monitoramento eletrônico, e os programas de justiça restaurativa refletem uma tentativa de repensar o uso da prisão como a principal resposta à criminalidade. 

No entanto, a aplicação das alternativas penais ainda enfrenta desafios consideráveis. O anuário destaca a resistência cultural e institucional em muitos estados, onde persiste uma visão punitivista que privilegia o encarceramento em detrimento de alternativas mais eficazes para crimes não violentos. Além disso, há uma falta de infraestrutura adequada e de programas de acompanhamento para garantir a efetividade dessas medidas alternativas. 

A análise dos dados do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública evidencia os múltiplos desafios que o Brasil enfrenta na área de segurança pública. A fragilidade das políticas de segurança se destaca pela incapacidade de lidar de forma eficaz com o crescimento do crime organizado no país. A falta de um compromisso claro e consistente de governos de diferentes posições no espectro político agrava esse cenário. Muitas vezes, esses governos adotam um discurso negacionista em relação aos dados, além de improvisar e recorrer ao populismo penal como resposta à ineficiência das políticas de segurança, ao invés de implementar estratégias baseadas em evidências. 

Por outro lado, o sucesso de alguns governos estaduais na redução da violência mostra que é possível alcançar resultados positivos quando as políticas de segurança são baseadas em evidências e na integração eficaz entre as polícias e diferentes níveis de governo. Esses estados demonstram que uma abordagem coordenada e colaborativa pode ser eficaz no combate à criminalidade. Além disso, as políticas municipais de prevenção à violência têm se tornado cada vez mais relevantes, com municípios adotando iniciativas que abordam as causas subjacentes da violência, contribuindo para uma segurança pública mais abrangente e preventiva. 

Ademais, há uma necessidade urgente de reforçar a implementação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que visa a coordenação de ações entre os governos federal e estaduais. Esse sistema pode proporcionar uma resposta mais organizada e coesa às questões de segurança. Por fim, é fundamental assegurar que as regras do Estado Democrático de Direito sejam mantidas e respeitadas, garantindo que a responsabilização criminal dos autores de delitos seja conduzida de forma justa e eficiente, sem abrir mão dos direitos e garantias fundamentais. Este compromisso com a legalidade é essencial para construir uma sociedade mais segura e justa, assegurando a igualdade de tratamento perante a lei, na perspectiva da consolidação da democracia e da redução da violência e da criminalidade. 

*Artigo publicado originalmente no Jornal GGN escrito pelo professor da Escola de Direito da PUCRS Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. O docente é é sociólogo, associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, membro do Comitê Gestor do INCT-InEAC, e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.