A filosofia sempre ponderou sobre a natureza da satisfação plena – um campo que agora recebe grandes doses de contribuição da neurociência e da psicologia. Hoje, já se sabe que a felicidade é uma porta com múltiplas e complexas chaves. E o mais importante: você não tem a obrigação de procurá-las.
segunda-feira, 17 de junho | 2024A filosofia sempre ponderou sobre a natureza da satisfação plena – um campo que agora recebe grandes doses de contribuição da neurociência e da psicologia. Hoje, já se sabe que a felicidade é uma porta com múltiplas e complexas chaves. E o mais importante: você não tem a obrigação de procurá-las.
Foto: Giordano Toldo
Encontrar um propósito de vida é uma busca absolutamente particular. Mas ao menos um objetivo é comum a todos os seres humanos. “Não há ninguém que não queira ser feliz”, definiu o teólogo Santo Agostinho, por volta do século 5. O sábio, um dos artífices do pensamento ocidental, chegou a elaborar a sua fórmula própria para alcançar a felicidade. Nos liceus de Hipona (atual Argélia), Agostinho alertava seus discípulos sobre a efemeridade dos pequenos desejos.
O segredo do bem viver era o contentamento. E o caminho para alcançá-lo passava por entregar-se àquilo que havia de mais grandioso e perene – no caso, a sabedoria e a fé em Deus. Ou seja, um tesouro acessível a quem se dedicasse a cultivá-lo. Em 2011, entretanto, cientistas da London School of Economics and Polical Science (LSE) chegaram a uma descoberta oposta à tese do santo filósofo. Eles notaram que chave da felicidade pode ser microscópica, transitória e quase aleatória. E não está disponível a todos de maneira equânime.
A serotonina é o neurotransmissor responsável pela sensação de bem-estar. Representa uma das pontes por onde a felicidade deixa o seu ambiente abstrato e se torna palpável. Sua materialização se dá por meio de sensações positivas percebidas pelo sistema límbico – região do córtex frontal que abrange as emoções, o comporta – mento e a memória. Algumas pessoas conseguem promover essa transição de maneira mais fácil. Elas são dotadas de uma variante robusta do gene 5-HTT. Trata-se do trecho do DNA que gera um transportador da serotonina, cuja função é pulverizar essa química benigna entre os neurônios.
O estudo da LSE envolveu 2.500 pessoas dos Estados Unidos. Elas tiveram o genoma analisado e foram questionadas sobre os seus níveis de bem-estar. Aquelas que detinham o tipo longo do 5-HTT se mostraram muito mais propensas à felicidade. Cerca de 69% disseram estar satisfeitas ou muito satisfeitas com a vida. O percentual caiu para 19% no grupo cujo gene era mais curto – menos eficiente. Já em 2016, outro gene entrou em pauta: o FAAH. Esse filete gera uma proteína que metaboliza o neurotransmissor anandamida, ligado à ampliação do prazer sensorial. A substância é encontrada em algumas drogas e até no chocolate.
Um grupo de geneticistas da Universidade de Varna, na Bulgária, e da Universidade Politécnica de Hong Kong, na China, analisou mais de 400 mil pessoas de acordo com seus perfis de humor – abrangendo uma gama de estados emocionais. Foi notada a prevalência do FAAH em países onde havia mais pessoas felizes. México e Nigéria, por exemplo, tiveram a variante eficaz do FAAH em 40% da amostragem. Em ambos, 60% dos entrevistados davam joinha para a vida. Na China e no Iraque, onde o FAAH funciona bem para apenas 10% do grupo, o percentual de felizes caiu para 20%. Seria possível dizer que o acesso à felicidade está submetido a uma mera loteria genética? Os pesquisadores descartam essa hipótese.
A genética ajuda, mas não é determinante para alguém ser feliz, segundo a LSE. O caráter comportamental exerce uma influência direta. Aqui, a sabedoria moderna faz as pazes com a antiguidade. Há quase 2.500 anos, o grego Aristóteles analisou as virtudes do agir humano para elaborar o seu conceito de felicidade – definido pelo termo eudaimonia. Para o filósofo de Estagira, esse estado de ser não era apenas um sentimento ou uma promessa: era uma prática. “É viver de uma forma que cumpra o nosso propósito”, diz Wagner de Lara Machado, professor e pesquisador das Escolas de Ciências da Saúde e da Vida e de Medicina da PUCRS. Talvez, a humanidade jamais tenha concordado tanto com Aristóteles quanto nos dias de hoje. E isso vem impactando o mundo de diferentes formas.
Em fevereiro de 2021, o economista Anthony Klotz previu a aproximação de uma onda de pedidos de demissões nos EUA. Ele acreditava que um levante de inconformidade com os modelos de trabalho atuais, turbinado pelas limitações da pandemia, levaria muitas pessoas a promoverem uma guinada em suas vidas. O mercado deu de ombros, pois os números não apontavam nada de especial nos desligamentos. Mas o cenário logo mudou. Cerca de 4 milhões de pessoas deixaram seus empregos em agosto daquele ano – quase 3% da força de trabalho americana. Foi o maior contingente da história, logo superado pelos dados dos meses seguintes. A cascata de gente pedindo as contas também desaguou no Reino Unido, na França e no Brasil.
Por trás do fenômeno, batizado como Grande Renúncia (Great Resignation), está a busca pela felicidade. Um dos principais motivos apontados por quem vem abandonando postos de trabalho ou mudando de carreira é a necessidade de estabelecer uma rotina mais aprazível e condizente com seus valores.
Nenhuma questão atual é tão importante quanto esta. A vida é curta. Mas, na infelicidade, pode ser longa.
Juremir Machado da Silva
É o que argumenta o escritor e professor Juremir Machado da Silva, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da PUCRS. Ele reflete sobre o tema no livro Ser feliz é tudo que se quer. A obra, elaborada a partir de textos publicados por ele no jornal Correio do Povo, revisita 35 pensadores para falar do combustível que move a humanidade.
Foto: Giordano Toldo
A perseguição quase impositiva da felicidade pode ser considerada um traço do atual zeitgeist – o espírito de nosso tempo. Mas nem sempre foi assim. Na Idade Média, sorrisos fartos não eram exatamente uma manifestação muito benquista. Havia certa reverência à melancolia, reflexo de um ideário religioso mais sóbrio e restritivo, típico da era medieval. Em História da felicidade, o americano Peter Stearns, professor da Universidade George Mason (EUA), explica que o conceito mudou dali em diante. A constituição francesa, por exemplo: com seu caráter libertário, estabeleceu a felicidade como um direito do ser humano, em 1793. Hoje, parece ter se tornado um dever. “Num mundo sem transcendência, no qual o homem fixa seus valores, a felicidade é, ao mesmo tempo, dogma, utopia, obrigação e fardo, diz Juremir Machado.
A chamada “positividade tóxica” desponta como subproduto dessa postura. Quando nos sentimos deprimidos, ansiosos, irritados ou tristes, um mecanismo comum de enfrentamento é enterrar esses sentimentos e emoções e tentar seguir em frente. O ato de impor a nós mesmos – ou aos outros – uma atitude falsamente positiva se manifesta em clichês como “não se deixe abater” ou “poderia ter sido pior”.
Há quem lance mão de uma metafísica vazia para culpabilizar o próprio indivíduo por estar apartado da felicidade – “você atrai o que emana”. Palavras aparentemente bem-intencionadas, mas que negligenciam o sofrimento e o reputam como mera escolha – e não um fenômeno cultural, histórico e socialmente determinado.
O problema desse olhar é a negação de todos os aspectos emocionais que sentimos diante de qualquer situação que represente um desafio. Existe a chance de idealizar-se a vida perfeita.
Wagner de Lara Machado
O professor diz que as redes sociais constituem terreno fértil para a “ditadura da felicidade”. Isso acontece porque, em público, as pessoas tendem a destacar o lado bom da vida. Ninguém quer ser visto em prantos, com um pote de sorvete no colo. A hashtag #GoodVibesOnly (apenas boas energias), por exemplo, conta com mais de 18 milhões de menções no Insta – gram. Ao que tudo indica, isso gera um efeito rebote.
Foto: Giordano Toldo
As “bolhas de felicidade virtual” pressionam os usuários a comparar suas vidas e conquistas com as dos outros. Ao deparar-se apenas com as melhores versões alheias, muitas vezes idealizadas e filtradas, ele corre o risco de rebaixar a própria experiência no mundo. A grande cilada está em julgar os sentimentos “negativos” como maus ou inadequados. Uma pesquisa da Universidade da Califórnia (EUA) mostrou que essa postura aumenta os níveis de estresse, abrindo a porta para a ansiedade e a depressão.
Nesse sentido, há um crescente conjunto de pesquisas indicando que o ser humano se sai melhor quando aceita emoções desagradáveis como apropriadas e saudáveis, em vez de tentar combatê-las ou suprimi-las. Ainda assim, cultivar uma perspectiva esperançosa em relação à felicidade também pode ser muito útil. É o que o americano Martin Seligman, precursor da psicologia positiva, vem tentando propor há cerca de 30 anos.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) indica que, em 2030, a depressão será a principal causa de incapacitação, à frente, inclusive, das doenças cardiovasculares. Atualmente, a entidade estima que 121 milhões de pessoas sofram da doença. Ao mesmo tempo, começaram a surgir novos enfoques que buscam questionar se o papel da psicologia estaria, de fato, limitado a uma atuação paliativa para abrandar crises ou se existiria algo a mais nas pessoas que funcionasse como alavanca para o bem-estar e a felicidade.
Como presidente da Associação Americana de Psicologia no final da década de 1990, Martin Seligman criou uma rede de estudiosos que se dedicaram a pesquisar “o que funciona” no ser humano. A psicologia positiva centra-se na prosperidade individual e social, a partir de tópicos como felicidade, autoestima, otimismo e alegria.
Foto: Divulgação
Quando nos concentramos nos pontos fortes das pessoas, estamos, indiretamente, ajudando-as a lidar com as suas dificuldades.
Tal Bem-Shahar
Explica o psicólogo israelense Tal Bem-Shahar, que lecionou por 25 anos em Harvard e hoje é titular da disciplina Positive Psychology: the Science of Happiness (Psicologia Positiva: a Ciência da Felicidade, em português), disponível para todos os estudantes da pós PUCRS Online.
O ensino sobre a felicidade é uma tendência na educação superior. Além de universidades privadas, como a PUCRS, várias instituições públicas – como Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Universidade de Campinas (Unicamp) – ministram disciplinas ou cursos nesse sentido pelo menos desde 2019. Antes disso, a felicidade já fazia sucesso na grade curricular de instituições internacionais de renome, como Harvard e Yale (onde chegou a ser classificada, pelo The New York Times, como “a aula mais popular de todos os tempos”).
As aulas de felicidade partem da psicologia positiva tanto quanto da mudança comportamental. E são embasadas por vários estudos clínicos e científicos. O que eles dizem? Décadas de pesquisa mostram que uma atitude otimista é um agente fortalecedor da saúde, protegendo o organismo tanto de condições crônicas quanto agudas. A má notícia é que isso vai contra a natureza humana: a maioria de nós está programada para se concentrar nas próprias fraquezas e limitações.
Essa tendência é resultado da evolução da espécie. Os mais atentos aos perigos tinham mais chances de sobrevivência. Trata-se de um talento ancestral para se concentrar nos problemas potenciais e evitar encrenca. Dá para escapar a essa propensão atávica ao baixo astral? Sim, usando a neuroplasticidade. O termo se refere à capacidade do cérebro de se redesenhar a partir dos estímulos recebidos. “Podemos treiná-lo para sermos mais felizes”, diz Gustavo Arns, especialista em psicologia positiva e idealizador do Congresso Internacional da Felicidade.
Foto: Giordano Toldo
A felicidade pode ser aprendida, como falar espanhol ou tocar violão. É uma habilidade mental, ligada à capacidade de processar e interpretar a nossa realidade.
Gustavo Arns
Acrescenta ele, que é professor na pós-graduação PUCRS Online em Psicologia Positiva: Ciência do Bem-Estar e Autorrealização. Mas atenção: assim como não há atalho para executar uma sonata de Mozart, não há um caminho rápido para a boa fortuna. Perceber uma realidade mais equilibrada e encontrar motivos que nos façam sentir bem é um esforço. Um dos exercícios que os psicólogos propõem é tentar listar dez coisas boas no final do dia. Também é importante refletir e saber lidar com aquilo que não deu certo. É uma questão de contraste: só compreendemos a felicidade pela consciência de seu oposto.
“Diante de uma situação que escapa ao controle, tentar negar o fato não vai nos fazer mais felizes”, diz Juliana Markus, aluna de doutorado do grupo de Avaliação em Bem-estar e Saúde Mental no PPG de Psicologia da PUCRS. “Focar na solução, e não no problema, ajuda a resolver as crises de forma mais rápida, eficiente e positiva”.
A felicidade não depende apenas de aspectos genéticos ou mentais. O elemento social também pesa nessa equação. Em 2012, a ONU criou o Relatório Mundial da Felicidade. O ranking leva em consideração variáveis como PIB per capita, expectativa de vida e percepções de corrupção. O Brasil ocupa o 49º lugar entre as 137 nações analisa – das. Está atrás de países como Arábia Saudita, Uruguai e Panamá. A Finlândia, líder nas últimas seis edições, aparece no topo. Dinamarca e Islândia vêm logo atrás. O último posto pertence ao Afeganistão. Os fatores externos, porém, detêm a menor fatia daquilo que Tal Ben-Shahar chama de “bem-estar integral”. Por esse cálculo, a felicidade deriva 50% da genética, 40% das escolhas pessoais e apenas 10% do ambiente – percentuais que podem mudar em situações extremas, como uma guerra. Ben-Shahar, assim, reforça a ideia de que o foco deve estar nas questões internas. Em especial, nas condutas capazes de aplacar o sofrimento.
“Resolvi estudar a felicidade de – vido à minha infelicidade. Era aluno de Harvard, atleta de ponta, ganhava bem e tinha boas perspectivas. Mas estava infeliz”, lembra o professor. “Depois de me beneficiar da psicologia positiva, quis compartilhar com os outros o que aprendi”.
O relato de Tal Ben-Shahar guarda outro insight: a correlação entre dinheiro e felicidade não é infalível. Uma pesquisa de 2024 da Universidade McGill, de Montreal, no Canadá, analisou 3 mil habitantes de 19 sociedades tradicionais ao redor do mundo. Apenas 64% sabiam lidar com dinheiro. Em uma escala de zero a 10, a média de satisfação com a vida ficou em sete. Algumas comunidades ultrapassaram a nota oito. De acordo com o estudo, são dados semelhantes aos dos países escandinavos – como os três que lideram a lista da ONU. Então, dá para ser feliz com o bolso vazio? A questão é mais complexa. Como se vê, há vários caminhos para a felicidade. E persegui-la a todo custo talvez não seja o melhor. Para Gustavo Arns, do Congresso Internacional da Felicidade, a experiência completa não é um destino, mas uma direção: como você viaja pela vida é o que conta. Dá para pedir mais? Talvez uma boa companhia. Fora isso, é reclinar o banco e aproveitar o passeio.
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